Manoel Pires, do FGV IBRE: 'Se um sistema com perspectiva intertemporal estivesse disponível, melhores decisões poderiam estar sendo adotadas'

Especialista analisa as finanças públicas em contexto de ciclo político acirrado.

Manoel Pires, do Centro de Política Fiscal e Orçamento Público (CPFO)Manoel Pires, Coordenador do Observatório de Política Fiscal do FGV/IBRE. (Foto: Divulgação)

Em um contexto político crescentemente acirrado, uma agenda fiscal de menor conflito político pode reduzir alguns riscos fiscais relevantes em uma perspectiva de um ajuste de longo prazo a partir de reformas institucionais.

O governo federal apresentou um pacote de ajuste fiscal no final do ano passado e seus efeitos deverão contribuir para facilitar a execução orçamentária de 2025 e 2026, que ainda possui desafios relevantes em função do quadro de possível desaceleração da atividade econômica do país. Explicar as medidas aprovadas e sua repercussão no orçamento foi objeto da Carta do IBRE de fevereiro.

Outro aspecto do pacote fiscal foi o componente político. O governo anunciou uma proposta de desoneração do imposto de renda para atenuar o impacto político negativo que as medidas de ajuste poderiam gerar. O efeito desse anúncio foi bastante negativo e a equipe econômica teve um resultado oposto ao esperado: mais juros e depreciação cambial, o que piorou as condições financeiras.

Mas o episódio alerta para o fato de que as questões políticas muito provavelmente terão peso elevado na discussão fiscal daqui para a frente, à medida que a eleição presidencial fique cada vez mais próxima. Com a eleição dos presidentes da Câmara e do Senado, a equipe econômica apresentou uma lista de 25 medidas prioritárias. Algumas delas refletem medidas do pacote que ainda não foram aprovadas.

Evidentemente, a equipe econômica deve avançar nesses temas seja porque as medidas possuem mérito ou porque o orçamento continua bastante apertado. Mas é razoável supor que tais medidas terão maiores dificuldades de tramitação e implementação, ao mesmo tempo em que a agenda fiscal precisa avançar. Assim, é importante que o governo apresente medidas fiscais que sejam pouco conflituosas, fazendo seu cálculo político.

A seguir apresento algumas medidas que podem aperfeiçoar a gestão fiscal sem gerar grande custo político ao governo e que podem significar uma perspectiva construtiva para a continuidade da gestão fiscal mais a longo prazo.

Os gastos tributários totalizaram R$ 700 bilhões em 2024. O governo federal tem avançado nesse tema, com medidas para conter seu crescimento: aprovando a reforma tributária e instituindo a DIRBI, que vai aumentar a transparência dessas renúncias fiscais. Conseguiu negociar o fim do PERSE (programa de ajuda ao setor de eventos) e a revisão gradual da desoneração da folha.

O Relatório Nacional de Gastos Tributários, publicado por uma equipe de pesquisadores da FGV, apontou várias fragilidades na formulação, mensuração, gestão e monitoramento dessas renúncias. Uma lei geral que uniformize os padrões técnicos, estipule órgão gestor para tais renúncias e exija critérios objetivos para sua renovação e para a criação de novas desonerações poderia aperfeiçoar a qualidade das renúncias fiscais do país e controlar sua expansão, oferecendo uma margem de contribuição relevante para a recuperação dos saldos fiscais a longo prazo.

A mudança nos padrões contábeis, a partir da migração dos critérios de caixa para competência, permite informar melhor a sociedade sobre os custos efetivos das políticas públicas. A correta mensuração dos ativos e passivos do governo, bem como a adequada distribuição do custo das políticas no tempo, eliminam uma série de distorções existentes na política fiscal.

Em regimes fiscais com apuração pelo critério de caixa, é comum a prática de escolher as políticas que cabem no orçamento do ano, independentemente de serem as mais efetivas, ou independentemente dos custos que apresentam no longo prazo. Isso distorce, por exemplo, a escolha entre despesas correntes e de investimento, um grande problema no Brasil.

Os níveis de investimento público no país são muito baixos. Há preferência de longa data por políticas de transferência de renda, muitas necessárias, algumas ineficientes. Mas o investimento cria um ativo governamental que eventualmente gera retorno. O impacto fiscal de longo prazo dessas despesas é bastante diferente, e isso deve ser considerando dentro do processo decisório.

A abordagem pelo critério de competência também valoriza a gestão dos ativos governamentais normalmente ignorados pelos regimes de caixa, e também mal administrados pelos governos. Uma política de gestão de ativos deveria ser instituída com o objetivo aperfeiçoar sua administração, criar valor e melhorar o retorno financeiro do patrimônio governamental.

A política de crédito é uma forma especial de política pública, pois seu impacto financeiro excede o ano calendário por alguns anos. Como os recursos são devolvidos, tais políticas são preferidas por serem mais baratas no orçamento. Mas o custo real dessa política não é o fluxo de caixa de um ano, e sim o valor presente dos desembolsos ao longo dos anos em que a política é colocada em prática. Vários países informam os custos das políticas de crédito no orçamento público. Nos EUA, por exemplo, isso ocorre desde os anos 1990, com a lei de reforma do crédito (Credit Reform Act).

Essas reformas podem parecer marginais à primeira vista, mas elas ajudam a melhorar a gestão fiscal e otimizam as decisões ao longo do tempo, levando em conta seus efeitos intertemporais. É importante lembrar que é muito difícil reverter decisões de gasto público feitas no passado, mas é possível aperfeiçoar as decisões, atendendo de forma eficiente o espaço fiscal disponível à frente.

Em 2022, o governo então recém-eleito aprovou a Emenda da Transição, que permitiu ampliar seus gastos em R$ 145 bilhões. Depois, com a edição do Novo Arcabouço Fiscal, permitiu-se que a despesa crescesse acima da inflação. O gasto primário, que atingiu 18% do PIB em 2022, chegou a 19,5% do PIB em 2023 e 18,7% do PIB em 2024, em uma economia que cresceu mais de 3% real ao ano. Houve uma flexibilização fiscal significativa com a mudança da regra fiscal.

Apesar desse crescimento, o arcabouço fiscal lida com uma série de dificuldades exatamente porque vários gastos foram decididos sem a necessária perspectiva intertemporal. A política de valorização do salário mínimo, que cabia no orçamento de 2023 e 2024, teve que ser revista em 2025, em um exemplo de falta de planejamento.

Se um sistema que trouxesse a perspectiva intertemporal estivesse disponível atualmente, certamente o conjunto de regras fiscais atuaria de forma eficiente, porque melhores decisões poderiam estar sendo adotadas. Controle fiscal requer decisões mais sustentáveis na margem.

Um dos principais componentes da percepção de risco fiscal está na ideia de que o governo federal irá adotar um expansionismo equivalente ao realizado no início dos anos 2010, em que vários riscos se acumularam e depois culminaram em uma crise: (i) excesso de alavancagem da Petrobras, (ii) aumentos dos empréstimos do BNDES e (iii) ampliação das garantias para operações de crédito para entes subnacionais.

De fato, quando observamos esses indicadores, no período recente, eles subiram um pouco. Mas estão muito aquém dos níveis alcançados naqueles anos mais críticos. Assim, é mais fácil imaginar que estamos observando uma normalização desses níveis de desembolso do que um expansionismo excessivo. De todo o modo, existem dois pontos que podem ser aperfeiçoados.

O primeiro é estabelecer uma política de longo prazo para os financiamentos do BNDES tornando o banco um pouco menos dependente da gestão fiscal de curto prazo. Os bancos de desenvolvimento mundo afora não costumam distribuir dividendos e pagar impostos para o Governo. Essa alteração poderia vir acompanhada da redução das emissões do Tesouro para que os fundos financiem as operações do BNDES a partir de subsídios implícitos. Tal medida ampliaria a transparência das relações entre Tesouro e BNDES, dando mais credibilidade à política fiscal, além de estabelecer limites e prioridades à atuação do banco. As operações com subsídios seriam mantidas em escala menor, e teriam um rito especial vinculado a projetos com grande impacto econômico.

As operações de crédito com garantia para Estados e municípios voltaram a aumentar. É comum pensar esse crescimento como um ato voluntarioso do governo atual, mas existem regras para a concessão de garantias. O fato é que o espaço fiscal dos entes subnacionais, para efeito de concessão de crédito, cresceu e o governo tem seguido a regra.

O problema é que o critério atual é muito ruim, porque liga o espaço fiscal de cada ente governamental a um percentual da receita corrente líquida do ano anterior. Assim, assume-se um compromisso de longo prazo a partir de um indicador extremamente volátil no curto prazo. Quando a RCL cai, o devedor não consegue honrar seu compromisso e pede socorro. Pensar a gestão fiscal subnacional a partir de vinculações de receita é um viés da LRF que deveria ser corrigido.

É importante adotar algum critério de renda permanente para cálculo do espaço fiscal. Assim, o novo critério de espaço fiscal tornaria o sistema mais resiliente e impediria que se reforce ainda mais o processo descentralização fiscal que estamos observando nos últimos anos.

Em um contexto político que se tornará cada vez mais acirrado, essas reformas institucionais poderiam melhorar a gestão das contas públicas sem desgaste político, e passar a confiança de que o governo trabalha para melhorar sua posição fiscal de forma consistente em uma perspectiva de longo prazo.