Crise à vista: o que o conselho precisa (mesmo) fazer
Conselhos com visão de futuro usam a adversidade para corrigir falhas estruturais.
Não há executivo ou conselheiro que não repita, em relatórios e discursos, que vivemos “a era da incerteza”. A frase virou clichê. Mas a realidade impõe seus próprios dados: crises têm sido mais frequentes, mais complexas e mais visíveis. E é justamente nos momentos de tensão que a atuação do conselho deixa de ser simbólica e se torna decisiva.
Patrícia Marins, sócia-fundadora da Oficina Consultoria e cofundadora do WOB (Women on Board). (Foto: Divulgação)
Mais do que testes operacionais, as crises colocam à prova a reputação das organizações. Empresas que saem fortalecidas desses momentos não são, necessariamente, as que erram menos, mas aquelas que respondem melhor. São as que agem com coerência, comunicam com clareza e preservam o que têm de mais valioso: a confiança.
Durante a pandemia, a norueguesa Yara International, uma das maiores fabricantes de fertilizantes do mundo, optou por descentralizar decisões e transferir autonomia para gestores regionais. A mudança, liderada pelo CEO Svein Tore Holsether, mostrou-se tão eficaz que foi mantida como estrutura permanente. Quando a guerra na Ucrânia impôs novos desafios, essa agilidade local novamente se provou crucial. O caso evidencia como conselhos que confiam na base e reforçam estruturas distribuídas tendem a responder com mais velocidade e consistência em cenários críticos.
Também em meio à guerra na Ucrânia, a Nestlé enfrentou forte pressão internacional para suspender suas operações na Rússia. Diferente de outras multinacionais que optaram por saída imediata, a empresa manteve apenas a produção de itens essenciais (fórmulas infantis e produtos médicos), congelou investimentos e suspendeu marcas não prioritárias, comunicando de forma aberta e estratégica. O resultado foi uma postura alinhada com princípios humanitários e coerência institucional.
Em solo brasileiro, a crise das Americanas, que eclodiu em janeiro de 2023 com a revelação de uma fraude contábil de cerca de R$ 20 bilhões, ganhou destaque também pela resposta rápida e coordenada do conselho. Após a descoberta, a empresa nomeou um comitê independente para investigar os fatos, afastou executivos envolvidos e conduziu uma troca imediata na liderança. Em poucos dias, solicitou recuperação judicial e estruturou um plano de reestruturação que recebeu 90% de apoio dos credores. Um ano depois, apresentava caixa robusto, bons resultados na Páscoa e apoio significativo dos acionistas, que aportaram mais de R$ 12 bilhões. A gestão de reputação e a assinatura de um plano de recuperação foram fundamentais para restaurar a confiança no mercado.
Em outro contexto, a Lime, empresa de micromobilidade, viu a receita despencar cerca de 95% no início da pandemia. Diante da recomendação de terceirizar a produção, seu CEO manteve a fabricação interna, preservando controle de qualidade, durabilidade dos produtos e diferenciais competitivos, elementos decisivos para uma retomada consistente.
Esses casos reforçam três grandes lições para conselhos:
- Delegar com confiança, permitindo respostas ágeis e contextualmente adequadas.
- Proteger ativos estratégicos, mesmo que isso signifique maior risco no curto prazo.
- Gerenciar reputação com transparência, usando comitês independentes, mudanças de liderança e comunicação clara.
Para conselhos atuantes, a crise não é apenas um problema a ser superado. É uma oportunidade para reafirmar identidade, revisar práticas e reposicionar estrategicamente. É nas decisões difíceis que se constrói - ou destrói - a confiança.
Mais do que obstáculos, momentos de crise são catalisadores de mudança. Conselhos com visão de futuro usam a adversidade para corrigir falhas estruturais, fortalecer a cultura e ajustar a rota com foco na relevância institucional.
Liderar em contextos críticos exige coragem, clareza e escolhas que projetem a organização para o futuro. Quando tudo está em teste, é a reputação que sustenta a empresa de pé.