Avanços na ciência trazem esperança no tratamento a pacientes de Alzheimer e a seus familiares
Especialista cita um estudo internacional sobre morte celular e a liberação pela Anvisa do medicamento Kisunla.
Com os resultados positivos em animais, o próximo passo é testar os medicamentos em pacientes humanos, em diferentes fases do Alzheimer. (Foto: Freepik)
Estima-se que cerca de 50 milhões de pessoas convivem com a doença de Alzheimer no mundo. Com o envelhecimento global da população, esse número tende a aumentar, o que torna urgente o desenvolvimento de terapias mais eficazes para lidar com a progressão da doença. Dois avanços recentes oferecem novas perspectivas: um estudo internacional sobre morte celular publicado na revista Science Translational Medicine e a aprovação no Brasil do medicamento Kisunla pela Anvisa. Quem explica é Pedro Modena, psiquiatra geriatra na Faculdade de Medicina da USP.
A pesquisa internacional investigou a necroptose — um tipo de morte celular programada — como possível mecanismo envolvido na neurodegeneração causada pelo Alzheimer. Cientistas testaram dois remédios em camundongos com alterações genéticas parecidas com as que causam a doença em humanos. “O artigo verificou que, nos camundongos que só apresentavam mutação no gene da proteína precursora amiloide, a APP, o processo de necroptose ocorreu em uma taxa semelhante aos animais usados como grupo controle, geneticamente saudáveis, e não apresentavam neurodegeneração significativa.”
O pesquisador aponta que a mutação na proteína beta-amiloide (APP), que é uma das características do Alzheimer, não foi suficiente para causar neurodegeneração significativa nos camundongos. As mutações que afetam a proteína Tau, no entanto, tiveram efeitos devastadores. A combinação, portanto, acelera a morte neuronal e faz com que o Alzheimer se desenvolva de maneira mais agressiva: “Isso ilustra como o processo primário da doença de Alzheimer, a amiloidogênese, por si só não é o suficiente para explicar o processo neurodegenerativo, mas potencializa e acelera o potencial neurotóxico da proteína Tau anômala”.
Modena explica, também, que o estudo tratou os camundongos com dois medicamentos conhecidos: ponatinib e dabrafenib, que já são usados no tratamento de leucemia e melanoma. As substâncias bloqueiam o processo de necroptose e preservam a densidade neuronal: “Essas moléculas foram escolhidas por já serem aprovadas para uso em humanos, especificamente no tratamento da leucemia mieloide crônica, o ponatinib, ou de um tipo específico de melanoma, o dabrafenib”.
Teste em humanos
Com os resultados positivos em animais, o próximo passo é testar os medicamentos em pacientes humanos, em diferentes fases do Alzheimer. Modena ressalta que o estudo aponta para uma nova linha de tratamento, mas também reforça que uma abordagem única dificilmente será suficiente. “Cada vez mais percebemos que agir sobre um único alvo tem pouca eficácia. Mesmo agindo sobre o que entendemos como evento primário da doença de Alzheimer, a amiloidogênese, conseguimos até agora apenas retardar discretamente a progressão da doença, nem perto de interrompê-la, muito menos reverter parte do que foi perdido.”
Ainda não há cura para o Alzheimer, mas os recentes avanços indicam que a ciência caminha em direção a tratamentos mais eficazes. A combinação de estratégias, o reposicionamento de medicamentos já existentes e o maior entendimento sobre os processos celulares da doença podem, no futuro, mudar o curso do Alzheimer — e, com ele, a vida de milhões de pessoas. “Tratar só uma parte do problema não tem funcionado muito bem. Por isso, acreditamos que o futuro do tratamento está em usar vários tipos de medicamentos ao mesmo tempo, como já acontece em outras doenças, como a insuficiência cardíaca”, explica.
O segundo avanço importante aconteceu no Brasil. A Anvisa aprovou o uso do medicamento Kisunla, que também age sobre a proteína beta-amiloide. Ele ajuda a limpar as placas dessa substância no cérebro, o que pode retardar a progressão da doença: “A proposta é que, mesmo sabendo que não é o amiloide em si o principal composto tóxico aos neurônios, ele acelera e potencializa outros eventos moleculares, estes, sim, neurotóxicos. Sua remoção do cérebro deveria lentificar a progressão da doença”, explica Modena. O Kisunla já está disponível para pessoas que estão nos primeiros estágios do Alzheimer.
Ele explica que um diferencial da substância em questão é ser uma droga modificadora: “O termo ‘droga modificadora de doença’ remete à sua capacidade de agir diretamente sobre o processo patológico, e não simplesmente buscar amenizar os sintomas, como as drogas que já estão no mercado há décadas”.
No entanto, ele alerta aos riscos desse método: as anormalidades de imagem relacionadas ao amiloide – conhecidas em inglês como amyloid-related imaging abnormalities (Aria). “A mesma aprovação feita pela Anvisa não ocorreu pelo principal órgão regulador europeu, o EMA, em função do risco significativo de efeitos colaterais graves. Podem ser hemorragias cerebrais ou edema, que é um inchaço cerebral. A maioria dos casos são leves ou até mesmo assintomáticos, mas alguns casos podem ser letais.
O pesquisador finaliza apontando esperança para o futuro: “Provavelmente veremos no futuro um esquema de três ou quatro drogas, cada uma alvejando um alvo molecular específico, sendo empregadas simultaneamente ou sequencialmente. Vai ser um tratamento caro e com efeitos colaterais significativos. Mas acredito, sim, que tem uma revolução em relação à forma que entendemos e tratamos as doenças neurodegenerativas em curso”.