Walter Firmo, de 85 anos, deu luz e dignidade aos grandes personagens da cultura do Brasil - e também aos invisíveis
O fotógrafo carioca Walter Firmo, de 85 anos, deu luz e dignidade aos grandes personagens da cultura do Brasil e também aos invisíveis, glorificados em sua negritude por meio de uma trajetória profissional premiada de sete décadas.
Pixinguinha em plenitude, na foto de 1967.
Repare no céu da bandeira brasileira, suas estrelasintangíveis e o lema de sonho. Walter Firmo é o sol vermelho que mora ali e a gente mal vê. O artista de 85 anos, olhos fixos no interior de seus personagens, amplifica o país num contexto de paredes coloridas, folhagens e janelas, a realçar sua dignidade. Com luz, porque é o sol, Walter Firmo contribui há sete décadas para construir quem somos, a nossa realidade inteira.
Foi em condição solar que o carioca, “chocolatezinho do Irajá”, conforme diz com ironia, encontrou esta repórter em outubro, num restaurante do centro paulistano, região por ele frequentada muito antes da miséria atual vista no entorno. Veio com o boné encarnado e o sorriso matreiro, às vezes com as lágrimas que ele temia chegarem em “jorro”. E narrou histórias de uma vida feita de arte, esta que o Instituto Moreira Salles, de São Paulo, mostrou em No Verbo do Silêncio, a Síntese do Grito, a melhor exposição fotográfica do ano.
Na festa de São Benedito, Espírito Santo, 1989.
Ele nasceu de Maria de Lourdes, linda menina branca de 15 anos caída de amores pelo ribeirinho amazônico bom de briga, o negro José, de 25. O prenome veio de Walter Pidgeon, ator canadense que a mãe amava pela elegância. Firmo referiu-se a São Firmino, o santo do dia de seu nascimento, 1º de junho. Um tio sugeriu que abreviassem para Firmo o segundo nome, e isto talvez tenha se colado à criança como um destino.
Pois trata-se de alguém firme desde a letra manuscrita com a qual dedica o catálogo da exposição à repórter. Temperados pela paixão, Lourdes e José deixaram o filho à criação da avó Teresa até os 5 anos, numa casa cujo quintal era ao mesmo tempo sua prisão de segurança máxima e as portas para o imaginar. Vó Teresa era como as zelosas senhoras antigas, prenhe de histórias, e lhe interpretava canções. “Lábios que beijei, mãos que eu afaguei”, canta ele com voz bonita e clara, ao se lembrar dessa influência familiar que lhe deu o ritmo e o compasso das palavras poéticas.
O Bumba-meu-boi em São Luís, 1994, para destacar as festas populares.
Todo ouvidos
Ele também leu Machado de Assis e Lima Barreto pela vida, embora tenha parado de estudar ao fim do Científico e feito da fotografia, sua universidade. “Trabalho fisicamente com os entornos, com os desenhos. Vou guardando o que vejo, como fazia Machado, que me parece um fotógrafo enrustido. Sabe quando ele descreve a luz que entra pela janela e pousa com sensualidade no espaldar da cadeira? Eu queria escrever assim, mas pelo menos eu tenho ouvidos bons e adjetivo bem.” Ama escrever, mas não é apaixonado por ler: “Como nasce uma pessoa assim?”.
Um dia pretendeu ser cantor. E até padre, depois de assistir aos salesianos rezarem a missa em latim. Ele tem 1,60m, mas sua perspectiva é a de um gigante. Um homem para o palco, dada a verve em dirigir o espetáculo, algo que a fotografia lhe permite fazer sozinho. Ele só se entendeu vítima de racismo em 1967, quando, em Nova York, um colega de trabalho se pronunciou contra a presença de um “negro analfabeto” na sucursal da revista Manchete.
Vendedor de sonhos na praia de Piatã, em Salvador, durante a década de 1980.
Daí para o cabelo black power, deprotesto, foi um pulo. Começou no fotojornalismo porque aos 14 anos, quando se interessou pela Rolleiflex, folheava revistas como a Life na banca e via por ali florescer o poder imagético de um estadunidense negro como Gordon Parks ou de um europeu como Ernst Haas. Na revista O Cruzeiro, a estrela absoluta vinha do Piauí, de onde aliás partiu sua atual mulher, a doce Lili, 54 anos, que o emociona há quinze, desde o instante zero em que se conheceram para um trabalho a ser feito no estado.
Em O Cruzeiro, o fotógrafo piauiense a causar imensa admiração em Firmo era José Medeiros. À sua maneira, Firmo queria, como ele, desbravar, conhecer. Fotografou em preto e branco desde a entrada na imprensa, aos 18, no jornal Última Hora, até conhecer a obra do estadunidense radicado no Brasil David Drew Zingg, a quem chamava de “mestre” e dele ouvia, em resposta, a mesma qualificação. Zingg era a cor. E em revistas como Realidade, Manchete, Veja e IstoÉ, além de atuar por conta própria, Firmo fez da fotografia colorida sua marca sensível, dos retratos às celebrações populares.
Integrante da festa de São João, em Cachoeira, no Recôncavo Baiano, em 1975.
Muitos prêmios, o primeiro deles em 1964, o Esso pela série de reportagens 100 Dias na Amazônia de Ninguém, que pautou, escreveu e fotografou para o Jornal do Brasil, e um cargo como diretor do Instituto Nacional de Fotografia, da Funarte, entre 1986 e 1991, que lhe deu extensa compreensão artística, tudo isto e mais o fizeram brilhar pela brasilidade. “Já estou pronto para virar enredo de escola de samba. Vai, Firmo!”.
Em 1967, a seguir o repórter Muniz Sodré, fotografou Pixinguinha para a revista Manchete. Terminada a entrevista no interior da casa de Ramos, Firmo perguntou se poderia levar a cadeira de balanço do músico para o quintal. Colocou-a sob a árvore, deixou um retrato seu ao lado e fotografou o mestre na cadeira, primeiro de perfil, carregando o saxofone nas mãos, depois de costas, pose original de que ele gosta mais, a exalar a plenitude do santo. Ele santifica seus personagens, negros em sua maioria, com os quais passou à convivência, caso da cantora Clementina de Jesus, de quem nunca perdeu um sorriso.
A glorificação da negritude na Festa de Bom Jesus da Lapa, na Bahia de 2001.
De vez em quando, ele que se entende com “alma ternurinha” dá “o coice” e se impõe. É preciso saber ser durocomo foi com o poeta João Cabral de Melo Neto, que não gostava de ser fotografado. Firmo esperou acabar a entrevista que ele dava a José Castello, para colocá-lo à janela. E para que o poeta fosse até lá, disse firme, elevando a voz: “Embaixador!”, João Cabral concordou prontamente, assim como fizera o artista Arthur Bispo do Rosário, que tampouco queria ser retratado.
Em 1985, ele obedeceu a todas as instruções de Firmo sem dizer palavra, até posar diante de um agave que evocava suas chagas emocionais. Firmo também simulou a saída de Madame Satã, figura célebre que deixara a prisão em 1976, por uma abertura na porta de ferro de uma loja do Rio. Os pretos brasileiros foram glorificados em sua fotografia, que surgiu de uma cumplicidade além das palavras. Não importa em que inverno vivessem, Walter Firmo descobriu dentro deles um verão invencível.