Senhoras do Mar

As fotos de Luciano Candisani, tema do documentário Haenyeo, a Força do Mar, da cineasta Lygia Barbosa — e que ganham em breve livro e caixa de coleção — revelam a cultura das mergulhadoras da ilha de Jeju, na Coreia do Sul, retratos poéticos das mulheres coreanas de até 90 anos que dedicam suas vidas ao trabalho nas profundezas do Pacífico, um ofício em extinção.

2Luciano Candisani, tema do documentário Haenyeo, a Força do Mar. (Foto: Luciano Candisani)

Ar nos pulmões era essencial para acom- panhá-las, assim como um senhor fôlego para prender a respiração debaixo d’água. As Haenyeo, cerca de 4,5 mil mergulhadoras entre 65 e 92 anos, moradoras da ilha de Jeju, na Coreia do Sul, mergulham até 12 metros de profundidade, com capa- cidade de ficar apenas dois minutos e meio sem respirar nas profundezas do Pacífico. Assim elas trabalham mais de cinco horas por dia, encontrando mariscos, polvos, peixes e frutos do mar. O desafio do fotógrafo Luciano Candisani para captar essas fantásticas imagens — subaquáticas ou em terra firme — foi sugerido pela cineasta e documentarista Lygia Barbosa. A busca fotográ- fica e o olhar de Candisani sobre as mergulha- doras seria o tema que encadearia a narrativa de retratar poeticamente as senhoras das águas no filme Haenyeo, a Força do Mar. Reconhecidas como Patrimônio Imaterial da Humanidade pela Unesco, as Haenyeo somavam 30 mil mulheres no pós-Guerra, mas a atividade está em vias de desa- parecer com a última geração de uma comunidade feminina que surgiu no século XVII. A ideia de Lygia Barbosa, que dirigiu o documentário Laer- te-se (Netflix), juntamente com a jornalista Eliane Brum, encantou Luciano Candisani, fotógrafo com uma longa trajetória ambiental. Candisani escolheu mergulhar como as Haenyeo, dispen- sando o cilindro de oxigênio, para registrá-las em seus mágicos retratos. Ele e Lygia partiram de São Paulo para a Coreia ao encontro delas.

O primeiro grande ensaio em preto e branco de Candisani forma um tema dentro do tema no documentário (NatGeo e TV Cultura). Lygia e Candisani, parceiros de anos, já haviam tra- balhado juntos em outros projetos e a cineasta conhecia a fundo como o fotógrafo trabalha em campo, inquieto em busca da melhor imagem. O trabalho foi possível após convite do documen- tarista sul-coreano Kim Jin Huk para Lygia par- ticipar de um edital de intercâmbio cultural na Coreia. As pesquisas começaram, juntamente com o roteirista Raphael Scire. Candisani, com farta expertise em imagens subaquáticas, seria o fio condutor da narrativa. “O mergulho dele no tema e o olhar, nos dois sentidos, para mostrar a vida des- sas mulheres do mar certamente gerariam um filme inspirador. Acreditei nisso e enxerguei o entrelaça- mento das duas histórias”, diz Lygia Barbosa.

Candisani sempre se interessou pelo tema das populações tradicionais que tiram o sustento do mar. “São comunidades que têm a vida ligada ao ritmo dos elementos do mar: o vento, as marés”, diz ele, que tra- balhou com o assunto também no Brasil, nas Filipi- nas, na América Central e na África. “Lygia já conhe- cia o meu interesse. E ela própria tinha o interesse de fazer um filme mostrando a motivação criativa e os esforços na busca de uma história empreendidos pelos fotógrafos documentais. Em 2017 surgiu essa oportunidade de ela filmar qualquer tema na Coreia do Sul. Quando se deparou com as mulheres do mar, uniu os dois desejos: contar essa história e contar a minha história com a fotografia e essa busca.” Lygia costurou uma forma inovadora ao fazer esse longa-metragem documental. “O filme não é um making off de um fotógrafo fazendo um determinado traba- lho. Foi um documentário sobre as mulheres do mar por meio do olhar de um fotógrafo. Lygia se apro- priou dos meus movimentos e do meu esforço em busca da foto, contando a história, para levar o espec- tador para dentro da história das mulheres do mar. O que conduziu o espectador para dentro da história foram esses meus movimentos enquanto eu fazia as fotografias das senhoras”, relata Candisani, que tem mais de 20 anos dedicados à fotografia.

“É uma história específica, mas que carrega conceitos globais caros à humanidade:a sustentabilidade, a longevidade, a saúde na maturidade e a força da mulher” LUCIANO CANDISANI

1Luciano Candisani, tema do documentário Haenyeo, a Força do Mar. (Foto: Luciano Candisani)

A relevância internacional da obra de Candisani o levou a integrar o júri de alguns dos mais respeitados prêmios de fotografia, como o World Press Photo, na Holanda, e o Wildlife Photographer of the Year, ma Inglaterra. Ele também compõe coletivos fotográ- ficos como o Internacional League of Conservation Photographers (ILCP), o Sea Legacy e o The Photo Society, que reúne fotógrafos colaboradores da edi- ção principal da National Geographic. Desde o início do projeto, as fotografias seriam muito importantes para o filme, porque eram o ponto de partida e uma espécie de conclusão. “O que eu estava buscando, por que eu me movimentava daquele jeito e os resulta- dos finais: as imagens. Eu me coloquei ali em campo como se tivesse produzindo alguns dos meus livros,ou uma reportagem para a National Geographic. que eu estava acostumado a fazer. Foi assim que a Lygia me dirigiu”, detalha o fotógrafo. Na narrativa visual, a sensação é de fazer parte de uma reportagem foto- gráfica. “Eu fui atrás disso e as câmeras vieram atrás de mim, para contar a história das mulheres do mar. As fotografias que eu fiz para o filme estão no filme, e depois, em 2019, eu voltei para Jeju para complemen- tar a documentação sobre o tema para uma exposição no MIS (Museu da Imagem e do Som) de São Paulo, junto com a editora Vento Leste.”

Agora é a vez do livro, em fase de captação de patrocínios e a caixa de coleção. Candisani reforça que o trabalho trata de uma história singular, mas car- rega conceitos globais caros à humanidade: sustenta- bilidade, longevidade. saúde na maturidade e força da mulher. “São temas atuais e fonte de interesse a todos nós”, diz. “Mulheres do Mar é a minha coleção mais bem-sucedida. Tem uma procura grande de colecionador. É o papel da fotografia que se consolida no seu reconhecimento como obra de arte, além de todo potencial enquanto documento intrínseco dessa arte visual.”

A coleção fotográfica tem esse conceito univer- sal. “É o nome de uma cultura, exclusivamente femi- nina, que não tem homem envolvido, e surgiu na ilha de Jeju, a 100 quilômetros do sul da Coreia do Sul”, explica ele. “E nessa ilha, por uma combinação de fatores não muito bem compreendida, que levou a um êxodo masculino, que obrigou as mulheres a irem para o mar em busca do sustento das famílias.” O estilo de vida ligado ao extrativismo marinho, que surgiu por pura necessidade, se tornou uma cultura coesa, com códigos de conduta e até com um dialeto próprio das Haenyeo. A cultura começou no século XVII e chegou a 30 mil mulheres, no pós-Guerra. Hoje, até pelo crescimento econômico dos Tigres Asiáticos e interesses diversos de novas gerações, a cultura Haeneyo está ameaçada, ou em extinção, e tende a desaparecer com as últimas senhoras do mar.

5Luciano Candisani, tema do documentário Haenyeo, a Força do Mar. (Foto: Luciano Candisani)

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