'Quem quiser compreender a cultura Yanomami, é obrigatório conhecer o trabalho da Claudia Andujar'
Aos quase 92 anos, a fotógrafa Claudia Andujar não desiste nunca. A artista, e responsável por mostrar ao mundo a importância da preservação da cultura Yanomami, diz que vai continuar lutando para proteger a tradição dos indígenas. Depois do sucesso da exposição na Fundação Cartier, em Nova York, a fotógrafa recebeu Robb Report Brasil. Aqui, registros inéditos do seu precioso acervo de mais de 40 mil imagens.
Retratos da série Maturacá, 1970-1971.
Eram 11h em ponto quando Cristina, a funcionária que entra às 10h30, abriu a porta do apartamento de grandes janelas de vidro de onde se via o skyline cinzento da São Paulo chuvosa e caótica. A fotógrafa Claudia Andujar habita o vigésimo andar de um prédio na Avenida Paulista. Senta sempre na mesma cadeira, uma clássica Aeron, cujo design carrega a reputação do conforto. Um luxo necessário, já que é onde ela passa pelo menos quatro horas por dia, lendo jornal ou no computador.
Claudia mora sozinha, embora quase nunca esteja só. Três pessoas se revezam nos cuidados com a casa e com ela. Não tem cachorro, nem gato. Só alguns animais de pelúcia, entre os quais três tartarugas que repousam no sofá da sala. Na entrada, dezenas de adornos indígenas estão encapsulados em um vistoso painel de acrílico.
Opiq+theri, Perimetral norte da série Sonhos Yanomami, 2002.
Há também dezenas de livros e muitos outros vestígios de que ali mora a dona de uma história que se mistura com a existência, e a resistência, de uma população indígena cuja cultura complexa ela revelou ao mundo através de suas fotografias e ativismo político.
“Quem quiser compreender a cultura Yanomami, é obrigatório conhecer o trabalho da Claudia”, resume o fotógrafo brasileiro Cassio Vasconcellos.
A potência do trabalho de Claudia Andujar já virou filme, ganhou prêmios internacionais, e mereceu um pavilhão inteiro no Instituto Inhotim, em Brumadinho (MG). Sua obra tem sido exibida em diversos lugares do mundo, ao longo das últimas décadas em cidades como Paris, Barcelona, São Paulo, e mais recentemente, no The Shed, em Nova York, que recebeu a exposição The Yanomami Struggle
(A Luta Yanomami), em parceria com a Fundação Cartier Pour L’Art Contemporain.
Retratos da série Maturacá, 1970-1971.
A mostra resgata desde o primeiro encontro da fotógrafa com os Yanomami, em 1971, até a transformação da sua arte em ativismo, quando ela e outros companheiros, como o missionário Carlo Zacquini criaram a Comissão de Demarcação do Parque Yanomami. Na sua mesa de trabalho, há três fotos de Zacquini. Um dos retratos está dentro de um cubo de acrílico adornado com minibuquês de rosasbrancas.
O apreço ao amigo remete a quando tudo começou. Foi o missionário quem ajudou Claudia a conquistar a confiança da comunidade Yanomami, numa das primeiras idas da fotógrafa a Catrimani, região de Roraima, junto com o companheiro, o também fotógrafo George Love. Já são mais de cinquenta anos de amizade e uma causa em comum.
Retratos da série Maturacá, 1970-1971.
O começo de tudo
Era início dos anos 1970, tempos duros da ditadura militar. O regime foi o responsável por lançar um programa que prometia abrir a Amazônia, com a ambição de explorar seus recursos agropecuários e minerais. O projeto atraiu centenas de pessoas de outros estados e, em pouco tempo, atingiu de forma dramática a população Yanomami, sobretudo por doenças.
Claudia Andujar foi a primeira a denunciar a situação, em 1977, e também a primeira a ser expulsa do território pelo governo militar, enquadrada na Lei de Segurança Nacional. Mas, como diz o refrão repetido no grito dos atos estudantis, “Quem não pode com a formiga não atiça o formigueiro”.
Retratos da série Maturacá, 1970-1971.
Claudia já era defensora dos direitos territoriais e culturais do povo Yanomani. A partir daquele episódio, a causa se sobrepôs até mesmo à sua carreira artística, embora, hoje, sua obra maior seja exatamente a forma singular com que interpretou visualmente a beleza e a cultura daquela etnia da Amazônia, seja experimentando novas técnicas fotográficas, seja convidando os indígenas a representar a natureza, e como viam o mundo, através de desenhos.
Foram inúmeras viagens e longas temporadas com os Yanomami. Durante seis anos ela fotografou suas casas coletivas, as expedições na floresta, os rituais xamânicos. Nessas experiências com o sagrado, inovou usando lente grande-angular, filme infravermelho, filtros coloridos e vaselina na lente da câmera para dar às imagens a força onírica do ritual. “Além da beleza nos corpos e práticas diárias dos indígenas, as imagens de Claudia apontam para a necessidade de reconhecimento dos direitos dos povos originários e da natureza.
Reahu em Toototobi - da série Sonhos Yanomami, 2002.
A fotografia para ela sempre foi ferramenta para evidenciar a fragilidade de algumas minorias”, diz Marcos Gallon, diretor artístico da Galeria Vermelho, que representa a artista. Claudia fotografou os Yanomami pela primeira vez, em 1971, para uma edição especial da revista Realidade. O contato com os indígenas mais isolados despertou nela um sentimento definitivo. Uma conexão que perdura até hoje, mesmo que algumas limitações tornem mais complicadas as idas à região que ajudou a demarcar. Quando a cineasta Mariana Lacerda rodou Gyuri, documentário sobre a fotógrafa exibido nos cinemas no ano passado, Claudia foi levada de cadeira de rodas por uma trilha da floresta até a comunidade Yanomami.
Um caminho conhecido, mas agora cheios de obstáculos, como as frequentes ausências de memória. Mas há coisas que ela não esquece, como o nome “Gyuri”, que dá título ao documentário. Gyuri, um menino de 13 anos que morreu no campo de concentração de Auchwitz, foi o primeiro amor de Claudia. Quando mostro o livro A Queda do Céu, ela menciona imediatamente Davi (Yanomami) Kopenawa, autor da obra junto com o escritor e etnólogo Bruce Albert. “Não perco o contato com eles. De vez em quando Davi vem me visitar”, revela.
Retratos da série Maturacá, 1970-1971.
Sem tempo para desistir
Naquela quinta-feira de março Claudia acordara tarde. Acabou perdendo a hora e foi despertada por Cristina, que a lembrou de nosso encontro. Só por isso não surgiu na sala do jeito que gosta. Bem aprumada, com cabelo alinhado e maquiagem que ela mesma faz. Nada que tirasse a elegância do traje de algodão, a delicadeza nos gestos e no trato e o brilho que muda a cor dos olhos castanhos
cada vez que fala dos Yanomami, “É a minha vida. O sentido da minha vida”, resume.
Sobre as recentes notícias da dramática situação de abandono dos Yanomami, que deixaram o Brasil perplexo no início do ano, Claudia prefere dizer que tem esperança que agora tudo melhore. Diz também que confia em Davi, e que ainda quer voltar ao território Yanomami. “Nunca vou ser tranquila.”
Retratos da série Maturacá, 1970-1971.
Desistir nunca foi palavra no repertório da poliglota nascida na Suíça, criada na Hungria e que teve o pai, judeu, morto no campo de concentração de Auschwitz. Claudia conseguiu fugir da guerra, junto com a mãe, de volta à Suíça. No fim dos anos 1940, mudou-se para Nova York e depois para o Brasil. Em 1955 comprou a primeira câmera em São Paulo. Sem nunca ter feito um curso de fotografia começou a viajar pelo Brasil e América Latina. Foi com ela que a fotógrafa, que fugiu do genocídio, ajudou a salvar uma população esquecida, que sofria em silêncio.
Claudia Andujar, na verdade, nasceu Claudine Haas.O sobrenome de registro foi mudado quando conheceu o primeiro marido, Julio Andujar, refugiado da Guerra Civil Espanhola. Também uma maneira de evitar rememorar a perseguição vivida. Com exceção da mãe, ela perdeu toda a família durante o Holocausto.
Claudia Andujar, 92 anos, naturalizada brasileira, foi também o nome mais lembrado no universo da arte e do ativismo político quando, no ano passado, comemorou-se os 30 anos da demarcação indígena da terra Yanomami. Trinta anos que atiçaram a formiga e o formigueiro. — E você tem algum parente no Brasil, Claudia? — “Não, só os Yanomami”.
Retratos da série Maturacá, 1970-1971.