O Rio de Nara Leão

No ano em que a cantora faria 80 anos, as homenagens evocam a saudade de um Rio de Janeiro vibrante e romântico culturalmente. A nostalgia dessa época provoca a indagação: onde mora hoje o Rio de Nara Leão?

Imagem do acerto pessoal da cantora e compositora, em meados da década de 60. A foto é uma das várias que aparecem no documentário "O Canto Livre de Nara Leão", uma produção do Globoplay, dirigido por Renato Terra.

“Depois de te perder/te encontro com certeza/talvez num tempo da delicadeza/onde não diremos nada/nada aconteceu/apenas seguirei, como encantado/ao lado seu.

Em Todo o Sentimento, de 1987, Chico Buarque cantou o amor como metáfora de um tempo, o olhar para o passado na busca de um presente e um futuro mais sensatos. Trata das coisas do coração, como sempre, mas quis também cantar o Rio de Janeiro, a cidade onde nasceu e passou boa parte de sua vida adulta, depois de algum tempo em São Paulo e um breve período de exílio em Roma. O Rio do tempo da delicadeza de Chico foi aquele de meados dos anos 1960, apesar da ditadura, apesar das dores da repressão.

Era o tempo de uma cidade embebida de música, na qual os amigos se reuniam em bares e apartamentos para falar de política, sim – mas sobretudo para construir letras de canções, organizar movimentos, combinar acordes e cantar, apenas cantar. Chico é um dos personagens centrais do documentário O Canto Livre de Nara Leão, lançado no começo do ano na Globoplay, como celebração dos 80 anos de nascimento da artista sem rótulos.

Jair Rodrigues 3 - Memórias da ditadura
Jair Rodrigues, Nara Leão e Chico Buarque no Festival de Música Popular Brasileira, em 1966. (Foto: Folhapress)


imagem_2022-04-25_115018590Nara e Chico juntos no palco em 1973. (Foto: Pedro Martinelli / Agência O Globo)


Numa das mais divertidas cenas de O Canto Livre, Chico e Nara, já em meados dos anos 1970, assistem juntos, numa tela de TV, à histórica apresentação em preto e branco de A Banda, no Festival da Canção de 1966, os dois tímidos como crianças. Nara, àquela altura, já era estrela, “a musa da bossa nova”, e ajudou o amigo a começar tudo o que viria depois. A dupla acha graça de tanta ingenuidade, de alguma desafinação, mas parecem mesmo se perguntar, ao ouvir a marchinha, como quem estivesse à toa na vida: cadê aquela ingenuidade, a delicadeza?

A delicadeza perdida, cujo símbolo era Nara, não estava alheia ao Brasil que a cercava, sofrido e doído. O olhar doce, os cabelos curtos, a batida de violão importado de João Gilberto, o sotaque carioca puxado – era tudo uma falsa moldura, aparentemente pueril, a protestar por dias melhores. Nara queria mudar o Brasil, e conseguiu. Queria se impor em um cenário masculino, e conseguiu. Com delicadeza, sim, mas com firmeza potente. Bonito de se ver. Cadê aquele Brasil, aquele Rio de Janeiro? Talvez essas sejam as perguntas intrínsecas em cada um dos cinco episódios de O Canto Livre. Uma nostalgia que se instala e permanece, quase como inquietação.

O apartamento de Copacabana

“Minha mãe foi uma mulher audaciosa, que se posicionava em favor daquilo que defendia”, diz a filha, Isabel Diegues, cineasta, roteirista e diretora editorial da Cobogó Editora. “Meus avós sempre lhe deram liberdade, autonomia e independência. Isso é muito bom, mas gerava uma grande responsabilidade, e ela soube equilibrar tudo isso muito bem. Ainda adolescente, já estava envolvida com trabalho, encontros sociais, tocando, cantando e se posicionando pela independência da mulher e da liberdade de escolha”.

Nara era musa, sim, daquele apartamento em Copacabana de frente para o mar, embora ela mesma negasse o título. O endereço dos pais da cantora era onde todos queriam estar, nem que fosse como espectador do que acontecia ali. E o que acontecia ali era o nascimento de um manifesto feito de harmonias, um jeito de fazer música que representava um estilo de vida – e que, do mundinho da Zona Sul carioca, se espalhou pelo mundo.

“A bossa nova sem Nara não seria a mesma coisa”, diz o arranjador, cantor, compositor e produtor musical Roberto Menescal, um dos pioneiros do movimento. “Ela foi muito mais do que a nossa musa. Foi responsável pela sigla MPB, que surgiu depois da bossa nova. Trouxe o morro para a cidade. Depois migrou para o Cinema Novo, o Opinião, lançou Carcará e foi em frente. Passou por Maria Bethânia, trabalhou com artistas nordestinos como Fagner e com a música do interior do Brasil. Depois retornou à bossa nova. Foi meio como quem diz: fiz tudo isso, tá bom? Nara foi uma figura indispensável para o que escutamos até hoje no Brasil”.

Menescal era um dos assíduos frequentadores do apartamento de Nara – a quem chegou a namorar. Viveu aquele momento seminal e inspirador, quase uma quimera quando se olha para a cidade e para o país de hoje. Há permanente saudade de um tempo – o tempo da delicadeza.

“A bossa nova sem Nara não seria a mesma coisa. Ela foi muito mais do que musa”, Roberto Meneschal.


E por falar em saudade

Mas, afinal, onde hoje estaria o Rio de Nara? Dito de outro modo: seria possível transpor o Rio dos anos 1960 para os anos 2020, dentro dos apartamentos, nas ruas? Muita coisa mudou, claro, mas aqui e ali, ele resiste, e de algum modo se recria. “A bossa nova foi a trilha sonora de uma época. Havia no ar a crença de um futuro melhor. Havia promessa de vida nos corações cariocas”, diz Mauro Ferreira, colunista do G1. Seis décadas depois, a bossa nova permanece na cidade como a nostalgia daquela modernidade, o símbolo vintage, porém sem mofo, de uma época em que os cariocas da Zona Sul eram felizes e sabiam. Dos ícones daquela geração e de espaços que marcaram época, surgiram novos nomes e points que avançam um novo capítulo da história da cidade.

Alguns daqueles locais que reuniam os criadores da bossa nova entraram para o roteiro turístico do Rio. Outros permanecem apenas na memória afetiva de quem viveu. Aquela Ipanema em que a moça do corpo dourado encantava Tom e Vinícius vive como nome do antigo famoso Bar Veloso, atual Garota de Ipanema, na antiga Rua Montenegro, hoje Vinícius de Moraes. Em suas paredes, está parte da história da bossa nova.

O histórico Beco das Garrafas, espaço em Copacabana, entre os números 21 e 37 da Rua Duvivier, onde a noite fervia com boates e nightclubs e os pequenos shows de bossa nova e outros ritmos, depois de um longo período fechado, reativou alguns dos bares que fizeram história. Não tem o mesmo charme, mas vale pelo que representou, como memória.

Marinho, em Copacabana: por que o bar da moda bomba todas as noites -  Diário do Rio de JaneiroO bar Marinho, em Copacabana, que resgata a bossa nova nos dias de hoje. (Foto: Divulgação)

Copacabana, hoje, é mais eclética. Em seus bares e restaurantes o presente e o passado se dão as mãos. O gastro-bar Marinho Atlântica, a algumas quadras do apartamento de Nara Leão, com vista para o mar de Copacabana, é ícone dessa mistura. Ali, ao entardecer, é possível ouvir uma playlist moderna, fundamentalmente eletrônica, com releituras da bossa nova, “Quero contribuir para esse resgate histórico. Todo o cenário da casa está baseado neste ideal, queremos mostrar essa história que é tão bonita. Copacabana guarda acontecimentos que ficaram na nossa lembrança”, diz Mário Filippo, o Marinho, um dos donos do lugar.


“Minha mãe foi uma mulher audaciosa, que se posicionava em favor daquilo que defendia”, Isabel Diegues.

 

Nara Leão tem disco de estreia analisado em livro, obra de samba e bossa  nova
A cantora no 3º festival de Festival de Música Popular Brasileira na Rede Record. (Foto: Folhapress)

Ipanema também ressurgiu com novos espaços que se propõem a resgatar a ebulição cultural e gastronômica do bairro. Durante a pandemia, 28 funcionários, entre maîtres, garçons, cozinheiros e sommeliers do badalado Antiquarius, o melhor restaurante português do Rio, abriram o Gajos d’Ouro. “Não esperávamos tamanha repercussão”, diz o sommelier André Vasconcelos, um dos sócios do Gajos. “Mantivemos 80% do cardápio do Antiquarius e os antigos clientes têm se emocionado muito ao chegar aqui. Tem sido um resgate de histórias e memórias afetivas. Alguns de nós atenderam grandes ídolos da música, da televisão e do esporte, viveram muitas histórias.”

imagem_2022-04-25_121618288Os restaurantes Gajos D’Ouro e Babbo Osteria são dois points da cena carioca contemporânea. Abaixo. Moysés Marques, um dos músicos da nova geração.

O candidato à point no bairro é o Babbo Os teria, do estrelado chef – Guia Michelin – Elia Schramm. “Queremos ser democráticos como o bairro e proporcionar uma experiência que fique na memória afetiva de cada um. Resgatar o melhor da Ipanema que abrigou tantos nomes como Vinícius de Moraes”, diz Elia. O Babbo fica em um imponente casarão que remete àquela Ipanema da Nascimento Silva 107. Da letra de Vinicius: “Rua Nascimento e Silva, 107/você ensinando pra Elizeth/ as Canções do Amor Demais/ Lembra que tempo feliz/ ai, que saudade/ Ipanema era só felicidade/Era como se o amor doesse em paz”.

Este novo Rio, para o qual desejamos transpor Nara, também bebe na fonte de músicos da nova geração. Há uma moçada que tem participado de um intenso movimento afetivo musical, não só da bossa nova como da MPB. É o caso dos músicos João Cavalcanti, Moyses Marques, Pedro Miranda e Alfredo Del Penho (guardem esses nomes). Em janeiro passado, mês em que Nara Leão completaria 80 anos, aconteceu a segunda edição do Festival Rio Bossa Nova nas areias de Ipanema. Filho do jornalista Pedro Bial e da atriz Giulia Gam, o cantor e violonista Theo Bial protagonizou um dos encontros com alma bossanovista. Ele se apresentou com a cantora Leila Pinheiro, no evento que também contou com Marcos Valle. “Sou um grande apaixonado pela bossa nova, está na minha essência”, diz Theo, que cresceu cercado pelas memórias de Nara Leão, avó de seu irmão José Pedro Bial, fruto do relacionamento de Pedro Bial com Isabel Diegues. José, aliás, é o produtor de conteúdo do documentário O Canto Livre.

 

Foto: Leo Aversa (Foto: Divulgação/Leo Aversa)O músico Theo Bial (Foto: Divulgação/Leo Aversa)

Diz Theo, o músico: O meu projeto para 2022 é lançar um álbum com essa estética. Assim como o samba, considero a bossa nova patrimônio cultural do Brasil”. José, o roteirista, complementa ao tratar da série: “Foram três anos mergulhado neste projeto. Durante todo o processo, fui descobrindo coisas novas sobre a Nara. Me surpreendeu a ética, o esforço e a disciplina de trabalho dela e isso não é muito valorizado no Brasil”. Tudo somado, a trajetória de Nara pode ser resumida a uma palavra: fascínio. “Tenho uma admiração profunda por ela, por tudo que ela fez. Nara foi muito além da bossa nova ao trazer sua maneira de ver o samba com músicas de Zé Kéti e Cartola. Considero gigantesca a importância dela para a música popular brasileira”, diz Théo. “Ela nos influencia até hoje”.


E aquele apartamento e seus encontros, existiria? Talvez sim. O que foi o endereço da família Leão, em Copacabana, hoje é o de Caetano Veloso e de sua mulher, Paula Lavigne, no Leblon, também na Zona Sul. Ali acontecem reuniões de intelectuais, músicos e políticos. Brotará naquele endereço uma outra bossa nova? Não se sabe, mas é inegável a força de resistência e resiliência promovida por Caetano – ele também “filho” de Nara.

“Acho emocionante a jovialidade do Caetano, é muito legal vê-lo tomando essas iniciativas, construindo essas pontes. Considero o Caetano um dos maiores intelectuais do mundo. Vejo com muita alegria essa garotada fazendo coisas, estudando e conhecendo. Também desejo me alimentar dessas vozes”, diz Isabel Diegues, que vê nesses movimentos um pouco de Nara e um pouco desse Brasil que canta e é feliz. Também um pouco de uma raça, que não tem medo de fumaça. E não se entrega não.


O apartamento de Caetano Veloso, o ponto de encontro atual de intelectuais, músicos e políticos. (Foto: Reprodução/Instagram)