Nos 75 anos do New Look, o legado de fantasia e beleza estéticas de Christian Dior num mundo que precisa ser reconstruído
Como a sociedade não é um monolito, nem todas as mulheres se encantaram com esse visual que não combinava em nada com a praticidade que o mundo do trabalho, ao qual elas alcançaram com a Guerra, demandava.
O tailleur Bar, de 1947: o icônico new look de Dior, a nova silhueta com casaquinho acinturado, saia plissada, luvas, saltos e chapéu. (Foto: Reprodução)
O empresário francês da indústria têxtil, Marcel Boussac, aumentou ainda mais sua fortuna depois da Primeira Grande Guerra, ao transformar com grande sucesso o tecido sobressalente que impermeabilizava os aviões de então em capas de chuva. Pouco depois da Segunda Grande Guerra, em mais uma atitude visionária, ele foi o responsável por patrocinar Christian Dior a ter sua própria casa de costura. Mais uma decisão que mudou a história da moda. Em fevereiro de 1947, o estilista apresentava numa manhã chuvosa a primeira coleção que levaria seu nome ancorada no tailleur Bar.
O casaquinho acinturado de seda bege e ombros naturais vinha acompanhado de uma saia preta plissada quase no tornozelo. Para compor, sapatos de saltos altos, luvas e chapéu. A audiência extasiada viuse diante de um resgate de feminilidade e do glamour. E a redatora da Harper’s Bazaar, Carmen Snow, descreveu o trabalho de Dior como um novo visual para a moda, ou seja, o New Look.
“O mundo estava sedento de glamour depois da Guerra e Dior capturou o espírito do tempo. Sua proposta de silhueta ampulheta, inspirada na Belle Époque, era o oposto dos figurinos confortáveis, com peças apropriadas do guarda-roupa masculino, para as mulheres emancipadas de Chanel”, explica João Braga, professor de História da Moda, da Faap, e autor do bestseller “História da Moda, uma narrativa” (ed. D´Livros).
Como a sociedade não é um monolito, nem todas as mulheres se encantaram com esse visual que não combinava em nada com a praticidade que o mundo do trabalho, ao qual elas alcançaram com a Guerra, demandava. Mas, para a reconstrução do mundo, era preciso também sonhar, destaca Braga, e foi esse desejo de prazer estético, que desse conta das ruínas provocadas pelo conflito, este resgate de um tempo romântico, que Dior traduziu em suas criações para suas mulheres.
Christian Dior. (Foto: Reprodução)
“Até hoje, todo evento de grande impacto para a humanidade veio seguido de uma retomada do glamour e do luxo. Foi assim com a art déco no pós-revolução bolchevique, pós-Primeira Guerra e pós-quebra da bolsa de 1929, por exemplo. A inspiração New Look de Dior, por sua vez, dominou toda a década de 50 inspirando Givenchy e Balmain. Foi um fenômeno econômico também, a ponto de Dior ser responsável por 50% de todas as exportações de moda francesa no período”, lembra Braga. O mesmo aconteceu na Guerra do Vietnã com a leitura hippie chic de Yves Saint Laurent
No próximo ano, o New Look completa 75 anos em um mundo ainda envolto não só nos escombros da pandemia da Covid-19, mas também diante de uma sociedade que busca ser mais sustentável, diversa e inclusiva, e em que determinados padrões estéticos não encontram mais eco. “A empatia faz parte da moda contemporânea”, diz o professor. “Assim como o escapismo e nosso desejo de sonhar”.
A estilista Maria Grazia Chiuri, primeira mulher e diretora criativa a liderar a maison Dior desde a sua fundação, é a tradução desta transição entre fantasia e realidade. Em função da necessidade de isolamento social, sua apresentação da coleção prêt-à-porter de 2021, foi filmada no salão de espelhos do Palácio de Versalhes. Ela se inspirou em “A Bela e a Fera”, com referências a “Cinderela”, “A Bela Adormecida” e “Chapeuzinho Vermelho”.
O conto de fadas sombrio trouxe vestidos drapeados e cortados em formato de coração para um possível baile no futuro, ao mesmo tempo em que a coleção foi toda desenvolvida em alfaiataria em tons de preto e azul-marinho, num “aprisionamento da delicadeza etérea” como definiu a revista Elle.
Maria Grazia Chiuri reinterpretou o New Look de Dior. (Foto: Reprodução)
“Todos nós sabemos que há coisas na moda que não são boas para nós. Os contos de fadas nos mostram que fazem parte do ser humano. E, no final, o que todo conto de fadas nos ensina é que o que importa é o amor”, disse ela. No desfile cruise, em junho deste ano, em Atenas, Chiuri partiu de fotografias de uma coleção de Dior, de 1951, feitas nas proximidades do Parthenon, para elaborar a coleção. Numa mistura de Grécia Antiga com o mundo dos esportes, ela deu a tecidos que pareciam nylon um aspecto de seda em vestidos-túnicas. E lá estava ela, a jaqueta Bar para dar conta deste mundo helênico-olímpico. A estilista também já havia trabalhado em uma versão artesanal da Bar, feita em tricô, para o outono-inverno de 2020/2021.
Em seu mais recente desfile prêt-à-porter verão 2022, em setembro, Chiuri trouxe de volta a minissaia e uma homenagem a Marc Bohan, que, apesar de liderar a Maison Dior por 30 anos a partir de 1961, teve bem menos projeção que seu antecessor, Yves Saint Laurent, ou os criadores que vieram depois, como John Galliano. Bohan, por sinal, foi quem trocou a silhueta ampulheta do New Look por uma concepção de linhas mais retas chamada de slim look.
“Não podemos esquecer o contexto histórico do New look. Mas Chiuri também faz desfiles para sonhar, ela também traz uma cintura marcada ali, outro cintinho aqui e recupera um certo romantismo”, pontua Braga. “Dior morreu no auge, em1957. Quem pode dizer o que ele teria feito com o New look? Mas o certo é que na moda nem sempre se vê o novo, mas uma maneira nova que dialoga com o ar dos tempos. E, de novo, mesmo sem que a pandemia tenha terminado já estamos vendo o mercado de luxo em expansão.”