No ateliê com Nick Cave
Você não leu errado. O nome é este mesmo, distante, porém, de seu homônimo australiano, músico e parceiro de Wim Wenders. A reportagem abaixo revela um artista plástico afro-americano igualmente inquieto, que atua contra o racismo e espera iluminar o mundo.
O artista visual Nick Cave no estúdio em Chicago.
Em 1991, após o espancamento do afroamericano Rodney King pela polícia de Los Angeles e os conflitos de rua que se seguiram, o artista visual e designer Nick Cavecomeçou a criar a primeira obra daquela que se tornaria sua célebre série “Soundsuits” (Trajes Sonoros). Perturbado com a violência racial, Cave, um homem negro, homônimo do cantor australiano, projetou esculturas maginativas, prontas para vestir, que funcionaram como armadura metafórica, encobrindo o corpo inteiro e disfarçando a raça, o gênero, a classe e a idade de quem as usasse.
A cor da mortalha
Vinte e nove anos depois, ele desenvolvia a versão, que intitulou 2.0 desse trabalho inspirado em suas fantasias adolescentes do que o novo milênio traria, quando a realidade do século 21 se intrometeu: um policial de Minneapolis assassinou o inocente George Floyd. “Tal fato criou este véu, esta mortalha”, afirma Cave em seu ateliê de Chicago. “Sempre houve rompimento”, ele diz sobre as vidas de jovens inocentes afro-americanos perdidas nos Estados Unidos. “George Floyd, Michael Brown, Trayvon Martin. A lista continua e continua.”
Ele mudou a alegre profusão de cores e texturas que definia suas peças anteriores. Os Soundsuits, antigos e novos, são destaques de um trio de homenagens da cidadnatal para Cave: uma retrospectiva de três décadas no Museu de Arte Contemporânea de Chicago; ma obra pública exposta no Merchandise Mart; e uma exibição de gala no Museu DuSable de História Afro-Americana, com uma apresentação de moda coreografada e projetada em colaboração com seu irmão Jack.
Cave mudou-se para um amplo estúdio no bairro Old Irving Park, em Chicago, quatro anos atrás. Intitulado Facility, ele serve de espaço aberto de trabalho para o artista e seu parceiro, Bob Faust, assim como para seu irmão. Cave converteu um estacionamento nos fundos em espaço verde e restaurou as janelas voltadas para a rua e modo a criar uma sala com a fachada visível para os transeuntes.
Integrantes de sua equipe confeccionam a peça “Tondo”.
Após o assassinato de Floyd, em 2020, o estúdio convidou amigos para escrever cartas sobre racismo diretamente nas janelas, dentro do projeto Amends. E propôs à comunidade que expusesse seus pensamentos em fitas amarelas, depois penduradas em varais no gramado de uma escola, dentro do projeto Dirty Laundry; 1.200 pessoas participaram. Depois de integrar por mais de 30 anos o corpo docente do Instituto de Arte de Chicago, Cave continua a ensinar dentro do programa de mestrado da escola. Ele aproveita a oportunidade para comungar com os “criadores em ascensão”, como os intitula.
“Temos dois anos para fazê-los confiar em si mesmos.” Sua experiência como pós-graduado na Cranbrook Academy of Art, em Michigan, no final dos anos 1980, foi fundamental para o desenvolvimento de sua autoconfiança. Ele terminou as pinturas que configurariam sua tese um mês antes do prazo, mas logo decidiu que não estava feliz com elas. “Não era desafiador.”
Retrospectiva sobre o trabalho do artista no Museu de Arte Contemporânea local.
Rapidamente recomeçou o trabalho criando uma instalação e atuando dentro dela. Essa integração de coreografia (o artista estudou dança na companhia de Alvin Ailey) pressagiava os Sound-suits, que balançam e tilintam quando não habitados. Em Cranbrook ele era o único estudante negro. “Eu não me sentia inseguro”, conta. “Mas foi muito momento de intenso despertar.” Ele começou a coletar galhos em um parque e os trouxe de volta a seu estúdio, onde os reuniu em uma escultura, que decidiu usar como um escudo.
Responsabilidade cívica
Aqueles que desconhecem essa dolorosa história podem se inclinar aos Soundsuits, costurados a partir de materiais tão díspares quanto tecido de ráfia, suéteres vintage e achados de mercado de pulgas e detectar capricho, até celebração. Mas Cave atribui a sua arte um valor de responsabilidade cívica. Vê como sua a missão de trazer luz ao mundo por meio do diálogo. “A arte sempre me salvou do trauma que vivenciei com o racismo. Eu tenho esse veículo para suportar a carga. Porque é tudo muito duro, duro demais.”