Modernidade que é para ontem e hoje
Embalado pela profusão de efemérides puxadas pelos 100 anos da Semana de Arte Moderna, 2022 resgata movimentos artísticos do passado e inspira o sonho de transformações da cultura brasileira, pela força da diversidade e da inclusão.
MuBE, obra de Paulo Mendes da Rocha.
Quem disse que sou o último? Estamos condenados a ser modernos.” Assim o arquiteto Paulo Mendes da Rocha (1928- 2021) respondeu à provocação, em entrevista à Robb Report Brasil em junho de 2019, dois anos antes de sua morte, em maio de 2021. De frente para ele, em sua mesa de trabalho no escritório do IAB (Instituto dos Arquitetos do Brasil), perguntei como se sentia sendo o último dos modernistas, designação que coube ao então único brasileiro vivo detentor de um Pritzker, a maior honraria internacional da arquitetura. “Você tem que ser moderno sempre. Não existe a ideia de moderno como um momento ou um estilo”, ele acrescentou. Não era tempo de máscaras. Aos 91 anos, sagaz e espirituoso, Paulo Mendes da Rocha afastou, com esperança, o rótulo de que tudo terminaria com ele. E retrucou a indagação com a célebre frase do poeta mexicano Octavio Paz (1914-1998), prêmio Nobel de literatura em 1990.
Quando cunhou a expressão “Condenados a ser modernos”, o poeta mexicano atentou para um compromisso de reinvenção cultural permanente. A frase instigante alivia. E até angustia. Mas sobretudo encoraja. A visão de que estamos condenados a ser modernos ecoa em 2022 com magistral imposição. É como se não houvesse escolha. Seria mais do que desejo ou dever. Mais que missão ou premonição. Talvez sentença libertária, com pena a ser cumprida pelo destino. A modernidade nunca será ponto final de um percurso. Os 100 anos da Semana de Arte Moderna de 1922, manifestação artístico cultural que teve como palco o Theatro Municipal de São Paulo, entraram na pauta midiática e provocam um diálogo entre o Modernismo e as novas linguagens culturais hoje. Vivemos outro mundo e a configuração múltipla dos tempos hipermodernos na velocidade da luz e das redes sociais. O centenário do marco do Modernismo inspira a fantasia de um próximo capítulo transformador da cultura brasileira e de novos tabus quebrados, agora pelo viés da diversidade e da inclusão.
Helô Pinheiro, a Garota de Ipanema.
Além da semana protagonizada no Theatro Municipal de Sao Paulo por Oswald de Andrade, Mario de Andrade, Heitor Villa-Lobos, Anita Malfati, entre tantos outros artistas e escritores, o ano de 2022 reúne uma profusão de efemérides. Estão na lista do guarda-chuva dos 200 anos da Independência, marcos da cena cultural brasileira como 60 anos da canção Garota de Ipanema, de Tom Jobim e Vinicius de Morais; os 80 anos de Nara Leão e da bossa nova. Os 80 anos dos tropicalistas Caetano Veloso e Gilberto Gil. Os 80 anos de Milton Nascimento e Paulinho da Viola; os 60 anos do Clube da Esquina, de Milton, Lô Borges e Marcio Borges; os 40 anos do primeiro Noites Cariocas, quando o projeto de Nelson Motta revelou no Morro da Urca expoentes do Barão Vermelho, o Kid Abelha, o Paralamas do Sucesso, no ápice do rock nacional. Desse estimulante caldeirão, que consagra 100 anos de experiência cultural brasileira, o País se depara com um momento chave de sua história.
Além disso, o mundo hoje é muito diferente de 1922 e nada linear. As manifestações culturais são simultâneas. A força da diversidade, no entanto, mesmo com todos os obstáculos, se impõe na busca por uma nova transformação cultural e transgressão moderna. O rapper Emicida fez a sua aposta e deu forte contribuição. A história e os laços com heróis negros e artistas do passado o inspiraram a “ocupar” em 2019 o palco do Theatro Municipal de São Paulo, o mesmo cenário que embalou os modernistas e a Pauliceia Desvairada em 1922, para o show de seu último álbum AmarElo – é Tudo pra Ontem. As imagens do show, simbólico marco para a cultura preta, foram a base para o documentário homônimo, exibido na Netflix. Como proclama Emicida, a ocupação do Theatro Municipal paulistano é uma reparação histórica. Erguido por mãos negras, o espaço que foi palco do movimento Modernista, mas distante de presença afrodescendente. No cenário do auditório que une o barroco e o artnoveau, AmarElo liga passado e presente, costurando conexões entre marcos históricos e culturais.
Abaporu (1928), de Tarsila do Amaral.
No documentário da Netflix, dirigido por Fred Ouro Preto, estabelece-se um elo importante entre três momentos relevantes da história negra brasileira: a Semana de Arte Moderna de 1922; o ato de fundação do Movimento Negro Unificado (MNU), em 1978, pela valorização da cultura e de direitos do povo negro; e o espetáculo de estreia de AmarElo, que aconteceu no mês da consciência negra, novembro, em 2019. Usando o show do rapper no Theatro Municipal em 2019 como espinha dorsal, o filme explora a produção do projeto de estúdio AmarElo e, ao mesmo tempo, a história da cultura negra brasileira nos últimos 100 anos.
Ao intitular o documentário como É tudo pra Ontem, o rapper aponta a urgência de resgatar o passado para transformar o futuro. “Jair Rodrigues, Jackson do Pandeiro, Riachão e outros bambas já eram hip-hop antes mesmos de nós existirmos”, diz Emicida. A sua viagem no tempo une Mario de Andrade, Oswald de Andrade e Anita Malfati, ícones da semana de arte de 1922, ao Movimento Negro Unificado, que protestou contra a violência racial nas escadarias do Municipal em 1978, nos anos de chumbo da ditadura militar. Une o arquiteto Joaquim Pinto de Olivei ra, conhecido como Tebas – exaltado como figura crucial na formação da linguagem estilística arquitetônica no centro de São Paulo –, à antro póloga Lélia Gonzales e à atriz Ruth de Souza, primeira negra protagonista de uma novela. Na obra documental, o artista cita um ditado iorubá: “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje”. E propõe o que vem chaman do de neosamba: “Que a gente se aventure numa nova elaboração, em um novo ritmo. Uma nova linguagem artística.”
Disco Clube da Esquina, de Milton Nascimento e Lô Borges.
Na visão do próprio Emicida, são quatro décadas que separam a nossa ascensão ao palco do Theatro Municipal do encontro das pessoas do MNU (Movimento Negro Unificado) nas escadarias do Municipal em São Paulo. Emicida explica: “Então subir no palco e gritar ‘obrigado, MNU’ para o mundo é para que eles saibam que é da luta deles que nasce um sonhador como eu”. E o rapper emenda : “Quando eu cheguei aqui, tudo era impossível, qualquer coisa que falávamos era tida como problemática e improvável de se realizar. Hoje, não é mais. O palco do Municipal abrigou alguns dos mais importantes movimentos da arte do planeta e acho que caminhamos para ser isso”, diz ele, sobre sua própria obra.
Em suas palestras, José Miguel Wisnik, músico, escritor, professor de literatura da USP e um dos maiores intelectuais brasileiros em atividade, aponta Emicida e a obra AmarElo como o sinal mais luminoso e transformador entre a atualidade e a Semana de Arte Moderna de 1922. “Emicida faz um gesto generoso em relação ao próprio Modernismo e seu lugar. É uma discussão fundamental da importância do Modernismo.
Emicida no palco do Theatro Municipal de São Paulo, no show AmarElo, que traz referências da Semana de Arte Modernade 1922.
Aquela tradição modernista ficou datada e agora ela passaria por sua nova modalidade. O Modernismo tem sido rediscutido sob o crivo de classe, gênero e raça”, diz Wisnik. A aventura criativa de olhar moderno, que abraça ainda a preservação da memória brasileira no cenário da preservação do patrimônio enquanto traço de modernidade, pode incluir novas frentes. Na paisagem urbanística de São Paulo, o projeto Cidade Matarazzo chama a atenção para isso.
“Não existe futuro se não o passado não for preservado”, defende o empresário francês Alexandre Allard, idealizador da recuperação do complexo Matarazzo dos anos 1920 que abrigava o hospital maternidade onde nasceram 500 mil paulistanos e que estava abandonado há anos. O professor e pensador José Miguel Wisnik acredita não ser possível hoje pensar pela ótica de um próximo capítulo de rupturas artísticas, como nos moldes da Semana de Arte Moderna. Não ao menos nessa ordem. “Vivemos um mundo de simultaneidades que não comporta esse próximo capítulo, da ordem da equivalência”, diz.
“Um mito das vanguardas vigorou em parte do século 20 mas caiu. Hoje não temos esse lugar do passo além a ser dado numa linha de progresso da cultura e da arte. Isso não quer dizer que eu acredite que as coisas estão móveis ou paradas”, pontua Wisnik . É o desafio de ser moderno sempre.
Rosewood, no Complexo Cidade Matarazzo, idealizado por Alexandre Allard.