Maestria ancestral
O fotógrafo mineiro Eustáquio Neves, presente na 35ª Bienal de São Paulo, sobrepõe imagens cotidianas às da tradição negra de modo a construir narrativas memoriais.
Eustáquio Neves, fotógrafo mineiro presente na 35ª Bienal de São Paulo.
Eustáquio Neves é um mestre da ancestralidade negra. Cada fotografia deste brasileiro representa um conjunto de memórias simbólicas sobrepostas em negativos. Aos 68 anos, o artista aporta pela primeira vez na Bienal de São Paulo, com cinco imagens de duas séries elaboradas a partir dos anos 1990 nos quilombos Arturos e Ausente. “Construo pensando no cinema, acumulando narrativas”, ele conta diante do prédio da Fundação Bienal, numa tarde abafada de setembro, dizendo-se mais afeiçoado à luz lateral do pintor Diego Velázquez, e às paisagens dos cineastas Wim Wenders e Andrei Tarkovski, do que à obra dos grandes fotógrafos. De porte elegante, vestido com uma camisa Versace estampada em branco, ele não desfaz, contudo, dos mestres.
“Os fotógrafos europeus não eram minha escola. Admiro o Henri Cartier-Bresson, mas eu usava uma 28mm”, diz sobre sua lente de predileção, apta a capturar detalhes, enquanto o francês, com a 50mm, buscava rapidamente cenas de rua. “Além disso, eu fazia todos os recortes possíveis na foto,enquanto ele era cartesiano com a imagem. Até me inspirava no cara, mas fazia tudo ao contrário dele”.
Nascido em Juatuba, a oeste de Belo Horizonte, o artista aprendeu a exercer a criação livre, como fazem as crianças. E, quando menino, era determinado como gente que cresceu. Filho de Tereza, dona de casa e trabalhadora de uma família estruturada, ele se recusou, com 7 anos, a conhecer o pai que o abandonara. “Me vestiram com o terninho branco de festa e disseram que meu pai estava na cidade: ‘Quer conhecer ele?’ E eu respondi: ‘Não!’ Ganhei um docinho, meu pai ficou me olhando de longe e não o encontrei nunca mais.”
Fotógrafo afirma que a fotografia era como fazer anotações sobre meu percurso.
Determinação nunca lhe faltou. Mesmo desejoso pelas artes, o jovem que desenhava cursou Química na faculdade. “Não tive a fotografia como projeto desde o início. Pensava em teatro, até em cinema, mas fui estudar violão clássico por dois anos enquanto cursava a graduação. Eu queria muito ser químico.” Nos anos 1980, formado, estagiou no Ministério da Agricultura, elaborando testes de insumos.
Depois de seis meses, como só lhe pagavam a passagem, teve de repensar. Fez exame para Belas Artes e não passou, o que o levou a trabalhar no interior de Goiás, como químico. Não se apaixonou pela indústria impessoal do grupo Votorantim e investiu na curiosidade pela fotografia. Comprou uma câmera Yashica FXD Quartz que virou caderno de notas:
“Fotografar era como fazer anotações sobre meu percurso.” Mapeava a fauna, a flora e a indústria de Niquelândia (onde o níquel era abundante), e revelava o filme colorido em Goiânia. “Tirava fotos no tempo vago e as pessoas me descobriam. Nesse momento eu já tinha mais uma câmera, a Minolta.
Os colegas compravam minhas fotos de paisagem para usá-las como cartões postais.” Um mercado se abriu. Ele clicava os casamentos dos amigos, seus filhos recém-nascidos e até os “recém-mortos” do lugarejo, onde havia a tradição de fotografar os falecidos. Demitiu-se e montou um estúdio na cidade. Assim que sentiu ter evoluído, partiu para Belo Horizonte, em 1986. Submeteu três fotos de Ouro Preto em um concurso, recebeu menção honrosa por duas delas e a terceira foi a vencedora (seria contra o regulamento levar sozinho os três primeiros lugares).
O prêmio foi cursar aperfeiçoamento com Eduardo Castanho, que viu nas suas imagens, “fotos de autor”. Neves sabia o que queria desde 1982, quando uma exposição do artista Arthur Bispo do Rosário (1909-1989), no Museu da Pampulha, em Belo Horizonte, o impactara pela sobreposição dos elementos. “Minha organização é outra, sabe? Eu preciso tropeçar em um troço meu que está ali no chão para lembrar o que tenho de fazer.
Registro da década de 1990 nos quilombos Arturos e Ausente.
O Bispo tinha essa ordenação nas coisas que eu também pratico, embora mentalmente. Ele me libertou para a fotografia que eu faço hoje.” O fotógrafo informou à esposa, a pesquisadora Lilian Oliveira, que seus dias juntos seriam financeiramente difíceis a partir dali, porque ele se entregaria às sobreposições. Tirou tudo de letra:
“Não olho para trás, não vejo sofrimento. Minha carreira é tão prazerosa, faço o que preciso fazer.” No início dos anos 1990, conheceu o quilombo dos Arturos, em Domingos Pereira, Minas Gerais.
Descendentes de Arturo Camilio, filho de escravizados falecido em 1956, os Arturos dão continuidade às práticas culturais da comunidade, entre elas as festas religiosas. Após diversas visitas, Neves fotografou integrantes e seus instrumentos, compondo 12 fotografias para a série, entre 1993 e 1997. Na sua imagem do rei da comunidade, Neves justapõe renda e moeda colonial no topo da foto com garrafa de vidro de Coca-Cola e flor à direita.
Tais inserções simbólicas mesclam o sagrado e o profano no cotidiano, algo que ele experimentara por breves momentos na família católica. “Junto com a minha ferramenta fotográfica, os Arturos me levaram a falar das fronteiras cotidianas que uma pessoa negra vive no Brasil.”