Humberto Campana: "Beleza é ter verdade"
Homenageado especial do RR Design Awards, o designer inaugura o Parque Campana, um santuário de arte e natureza em sua terra natal, Brotas (SP), e diz que enxerga beleza na feiura e que o sentido da vida é ser generoso e respeitar o próximo.
O designer Humberto Campana.
Humberto e Fernando Campana (1961-2022), os Irmãos Campana, alçaram voo para o reconhecimento internacional ao subverter a ordem dos objetos, transformando materiais insólitos em arte e mobiliário. No dia 29 de julho, após um período de dois anos de luto pela morte do irmão, Humberto inaugurou em Brotas (SP), sua cidade natal, o Parque Campana, um legado da obra da dupla que mudou o design brasileiro.
“Vejo esse parque como uma resiliência, resistência, a tudo que eu vejo hoje em dia, o que acontece no planeta”, destaca Humberto.
Com 12 pavilhões e uma proposta de trabalhar com plantas vivas e materiais locais, o parque representa não apenas uma obra arquitetônica, mas um projeto de conscientiza- ção e educação ambiental. Advogado por formação, ele relembra momentos marcantes de sua trajetória e de Fernando. Destaca a influência de grandes nomes como Niemeyer, Paulo Mendes da Rocha, e Lina Bo Bardi na carreira dos Irmãos Campana.
“São nossos mestres”, diz. Pelo conjunto da obra, Humberto re- cebeu a homenagem especial no RR Design Awards 2024: “É uma honra ser reconhecido e celebrado no Brasil. O reconhecimento nacional tem um signi- ficado especial para mim, pois representa a valoriza- ção do meu trabalho pela comunidade brasileira”.
O que o inspirou a criar o Parque Campana e qual é a missão do projeto?
Vejo esse parque como uma resiliência, resistência a tudo que acontece (de ruim) no planeta. Estou trabalhando para melhorar a vida de uma comunidade, isso me dá esperança. Fazer isso é sonhar a possibilidade de poder transformar um pedaço de terra que eu e o Fernando herdamos em um san- tuário de plantas, de animais silvestres que estão voltando, e também mostrando com beleza. A ideia é educar ambientalmente as pessoas. É um lugar de regeneração da natureza e de si próprio, da alma de quem visita. É um lugar onde eu quero silêncio, sabe? Tirar sapato, pisar na areia, pisar na água.
Os Irmãos Campana levaram o Brasil para o mundo. Como avalia este legado?
É tão engraçado, mas acho que isso já estava escrito, sabia? Sou advogado, eu me formei na USP, na São Francisco, em 1977. Mas não quis ser isso. Queria ser escultor. Imagina um advogado que deixa a profissão e começa a fazer escultura e objetos de artesanato? Eu era para ser um loser, mas vida trouxe o Fernando até mim. O Fernando já era arquiteto, trabalhou na Bienal, tinha uma visão moderna. Foi acontecendo gradativamente. Fomos sendo publicados no Brasil afora, com ex- posições em museus importantes. Abri as amarras. Cheguei até onde não era para chegar. Escutei isso de um curador italiano, Marco San Michele. Em Milão, ele me falou: “Você foi aonde não foi permi- tido entrar”. O design, até antes da gente, era com- portado. Começamos na época do minimalismo. Nós fomos subvertendo. A globalização facilitou. O mundo começou a olhar o Brasil, a América Latina, a África. Essas regiões hoje são o que fo- menta a criatividade deste século. O novo está aqui. Tive a sorte de ter nascido no interior. Tive uma infância na fazenda do meu avô. Meu pai era agrônomo, eu plantava. Ter nascido em um lugar pequeno, sem acesso à cultura, me fez criar um mundo interior rico, meu e do Fernando também.
Qual foi o primeiro momento extraordinário da trajetória dos Irmãos Campana?
O primeiro momento foi em 1989. Eu era artesão, fazia meus espelhos de molduras de conchas. Nessa época, quase morri numa viagem pelo rio Colorado, fazendo rafting. Caí num redemoinho. Desse encontro com a morte, desenhei uma cadei- ra. Era uma espiral. Comprei uma chapa de ferro grossa e cortei com fogo essa espiral. Criamos a coleção Desconfortáveis. Eram móveis brutalis tas, feitos em ferro enferrujado. Questionava tudo. Imagina, você fazer uma exposição de design cha- mada Desconfortáveis. Aquilo não vendeu nada, lógico. Foi o nosso começo. Depois, veio a expo- sição do MoMa, em 1998. Fizemos uma exposi- ção com 14 peças curadas pela Paula Antonelli. Destaco ainda o café do Museu d’Orsay, em Paris. Ele tem o nosso nome, Café Campana. Trabalha- mos com a Louis Vuitton já faz 12 anos. Criamos a coleção de móveis Objetos Nômades. Todo ano lançamos uma peça nova com eles. A seriedade com que nos tratam é uma grande conquista.
"Em 1989, quase morri em um rafting. Desse encontro com a morte, desenhei uma cadeira. Era uma espiral. Foi o nosso começo".
A poltrona Banquete, dos bichinhos de pelúcia, também foi um marco. Como foi a história da criação dela?
Foi tão interessante. Uma grande mudança. Isso foi o início do ano 2000. Nós sempre quisemos fazer uma poltrona sem as formas tradicionais de fazê-la, que é pegar uma espuma e cobrir com teci- do. Um dia passou um rapaz em frente ao estúdio antigo, vendendo pelúcias chinesas. Ele parecia uma Carmem Miranda, cheia de jacaré, elefante... Veio a ideia. Comprei tudinho. Eu mesmo costurei um bichinho com outro, para testar. Fernando fez o desenho da poltrona. A pelúcia tem uma cone- xão com o afeto. Você ganha bichinho de pelúcia quando é criança. São memórias afetivas, prazero- sas, a conexão com a infância, com coisas boas.
Como você enxerga o papel do design?
O design é uma ferramenta política. Muda a vida das pessoas. Tem esse poder, seja a forma de sentar, seja como vai usar o novo objeto. Ele pode conter mensagens. Design é trazer toda essa alma embutida de fazer manual, colocar o afeto numa peça, mudar a visão de alguém. Pode também mudar uma comunidade.
E a beleza que o design traz para a vida, como você vê?
É engraçado o conceito de beleza. Às vezes o feio pode ser bonito. Eu me inspiro muito em coisas feias. Coisas que vejo na rua, o que me dói o olhar, que polui o olhar. Aquilo pode ter uma beleza tam- bém. É saber enxergar a beleza na feiura. Situações banais ou tristes. A beleza perfeita é entediante.
Como você traduziria isso para exemplos de objetos que criaram?
Nós fizemos uma cadeira para o museu (de design) Cooper Hewitt em Nova York. Nós curamos uma exposição lá em 2008. O tema era a trama. Criamos uma cadeira em vime com plástico q pegamos na rua. Chinelo, bicho de pelúcia, e ela está explodindo o lixo. Ela tem uma feiura. Ela é feita com descarte. Mas conta uma verdade: o mundo está explodindo em plástico. Beleza é ter verdade.
E é um objeto de luxo ao mesmo tempo. Qual é a sua visão do luxo?
Exato. É preciso tirar aquela noção do que é luxo. Luxo é ter tempo para refletir e propor. A minha profissão é um luxo, porque sou livre. É difícil manter um estúdio há 40 anos. Mas sou dono da minha vida. Pensei em desistir porque não tinha grana. Não conseguia vender o que eu propunha. Luxo é ter a liberdade de ser quem você quer ser. E não importa se vai agradar ou desagradar. É ser você mesmo.
Vocês percorreram esses caminhos até chegar aqui. E para frente, como vê?
Acabei de abrir uma grande exposição em Xangai, na China. Fiz a cenografia e duas grandes instala- ções. Eu me vejo ampliando o meu lado de artista de instalações. O que me dá satisfação hoje é poder explorar esse território novo da escultura. Era o que eu queria ser desde o início, um escultor. Quando deixei a faculdade, pensei: vou começar a minha vida com minhas mãos. E aí fui me educando. O Fernando foi me dando toda uma visão nova de arte, de design, que ele tinha estudado. O grande legado que o Fernando me deixou foi a ousadia. Sempre foi ousado. Tinha um gênio rebelde, indomável. Era um gênio genioso. Tínha- mos muitas idas e vindas. Era conturbado, mas um queria o bem do outro. Um queria levar o outro para um patamar maior. Só não tinha filtro. Coisas eram ditas na lata e, às vezes, a gente se atracava.
Parque Campana, em Brotas: oito dos 12 pavilhões estão prontos. A ideia é regenerar a vegetação para completar a arquitetura.
Irmãos...
Só que, às vezes, vinha um funcionário apar- tar a nossa briga (risos). Era pa, soco, tudo. É maravilhoso poder falar e rir disso.
Não é como aquela música do Gilberto Gil? “Vida é ale- gria, é dor e confusão, é som e paixão. Vida é o amor”...
Vida é confusão! É ótimo.
Estamos falando de vida e finitude. Como tem sido para você a experiência da perda?
É difícil perder alguém tão próximo. Você vai para o fundo do poço, mas isso te abre uma outra porta. Agora sou eu sozinho, tenho que me virar. Estou num momento criativo muito potente, seguro. O luto está me dando elementos para me renovar. Quando você perde alguém, você muda tudo. A visão de quem você é. Com quem você quer andar. Quem vai ser teu amigo. Eu era muito inseguro para criar. Hoje a ideia vem. E embarco nela.
Como você reflete sobre o sentido da vida?
O sentido da vida é ser generoso. Aprendi que quanto mais generoso sou, mais coisas vêm. Tenho devoção pelo meu trabalho, é a minha missão. O sentido é respeitar e ser generoso. Eu poderia estar viajando, de férias, correndo o mundo. Tenho 71 anos, penso na finitude. Eu já virei a juventude. Quero ter energia para conhecer o que não conhe- ço. Mas inventei essa história do parque em Brotas. Gostei de escutar que o parque vai mudar a vida das pessoas, que vai vir um novo tipo de turismo para Brotas. Na abertura, foram 300 convidados. Amigos de infância, pessoas da região, professores. Ver aquelas pessoas caminhando entre os pavilhões parecia um filme. Eu os observava de longe tocando as coisas, contemplando. Foi lindo.