As imagens inéditas de um paraíso ameaçado

O jornalista Leão Serva acompanhou as expedições do fotógrafo que apresenta fotos extasiantes da maior floresta do planeta, como forma de alertar para sua destruição ambiental acelerada.

Sem títulod1_page1_image1Indígena Yawanawá, Estado do Acre, Brasil, 2016.

O jornalista Leão Serva, que acompanhou expedições do fotógrafo Sebastião Salgado, narra a trajetória que levou um jovem economista a se tornar o mais famoso documentarista do mundo, e a produzir fotos extasiantes da maior floresta do planeta, como forma de alertar para sua destruição acelerada.

Sebastião Salgado documentou a comunidade dos indígenas Suruwahá durante o mês de setembro de 2017. O impacto do encontro para ele foi decisivo: “Os Suruwahá representam para mim aquilo de mais próximo do que Cabral deve ter visto ao chegar ao Brasil(...). Eles escolheram viver em um estado de quase total isolamento e mantêm suas práticas e a expressão visual de sua tradição cultural muito preservados. É realmente muito impactante. Vê-los, ao chegar, me causou uma emoção muito grande”, relembra o fotógrafo.

Um ano depois, eu visitei o grupo para uma série de reportagens, quando levei ampliações das imagens que o fotógrafo havia feito e trabalhos que tinha escrito sobre eles. Quando estava no posto da Funai na Terra Indígena (loca- lizado a cerca de seis horas de barco da maloca principal dos indígenas), cercado por alguns deles, fiz uma foto com o celular e mandei para Salgado, em Paris, usando o wi-fi do posto. – Que incrível, alguns deles estão usando roupas de brancos. Um ano atrás nenhum deles estava vestido...

2-Ilhas-Anavilhanas.-Estado-do-Amazonas-Brasil-2009--®-Sebastiao-Salgado-4-1024x683-1Ilhas Anavilhanas, Estado do Amazonas, Brasil, 2009.

do... A Terra Indígena dos Suruwahá está loca- lizada no município de Lábrea, no sudeste do Amazonas. Em 2017, a região parecia um exemplo de local preservado da floresta. Mas também ali, as mudanças galopam como os vaqueiros que passaram a frequentar suas ruas nos últimos tempos. Cinco anos depois, Lábrea é hoje o epicentro do principal foco de desmatamento em todo o Estado do Amazonas, um dos maiores de toda a região Norte. A velocidade da alteração de aspectos da cultura autóctone só não é maior do que o ritmo da destruição do meio ambiente amazônico.

Essa invasão de todo tipo de banditismo, de garimpeiros, madeireiros, caçadores, pescadores, pecuaristas, grileiros em geral, foi acentuada nos últimos anos pelo incentivo explícito e pela omissão dos órgãos públicos. A “boiada passando” em grande veloci- dade atribuiu uma urgência que possivelmente nem mesmo Sebastião Salgado vislumbrava quando começou a trabalhar no projeto Amazônia, a partir de 2009 ou, mais intensamente, de 2013 para cá.

Ou, em suas palavras, falando à Folha de S.Paulo: “Voltando para fazer essas fotografias eu constatei uma grande ferida na Amazônia, ela estava machucada. Vi regiões que, naquela época que eu tinha trabalhado, eram florestas totalmente virgens, e elas já estavam bem, bem destruídas. Aí vi que era o momento de fazer um trabalho maior”, relata Salgado.

O principal sinal desse assédio à floresta e seus povos são os índios isolados, ou de pouco contato, que recentemente passaram a aparecer com fre- quência em lugares distantes de suas áreas de origem, geralmente em beiras de rios ou próximos a vilas de brancos. Eles estão fugindo das regiões onde se abrigavam há décadas, muitas vezes séculos. Tentam se proteger da redução da mata, da escassez de caça e pesca e outras vezes do fogo colocado pelos grileiros.

bvl-noticias-3246-leao-serva-credito-sebatiao-salgado Jornalista Leão Serva acompanhou as expedições do fotógrafo.

Quando contam histórias dos primeiros encontros com o “homem branco”, os indígenas falam de quando “fizeram contato” (e não ao contrário), contam histórias de como “pacificaram” os “brancos”. Eles só fazem isso quando estão acuados, em fuga desesperada, assustados e sentindo-se ameaçados por algo que suplanta o trauma do encontro com gente tão diferente, que eles associam a massacres do passado.

Sebastião Salgado começou a vida profissional como economista. Nascido em Aimorés, no norte de Minas Gerais, fez o ensino médio e a faculdade de Economia em Vitória (Espírito Santo), a capital mais próxima da casa de seus pais. Ali começou a namorar a pianista Lélia Wanick, casaram quando ele entrou em um mestrado em São Paulo. Trabalhava em uma agência ligada ao governo do Estado. O jovem casal se envolveu com um grupo de apoio à resistência contra o regime militar.

Com o acirramento da ditadura, após o AI-5, em 1969 decidiram fugir para Paris. Foi na hora H: quando chegaram à França souberam que teriam sido presos se tivessem ficado no Brasil. Seus passaportes foram cassados. Começou um longo exílio que durou até a Anistia, em 1979. Em 1971, Salgado obteve um emprego na Organização Internacional do Café, em Londres. Na Europa, Lélia abandonou o piano e passou a estudar arquitetura. Para um curso de artes, ela precisou fazer fotografias. Mesmo duros, compraram uma câmera 35 mm, que nas horas livres Sebastião passou a usar como hobby.

11-indigenas-suruwaha-estado-do-amazonas-brasil-2017-sebastiao-salgado-scaledIndígenas Suruwahá, Estado do Amazonas, Brasil, 2017.

Em uma viagem à África, monitorando projetos de plantação de café, suas fotos ficaram boas e ele começou a sonhar com uma outra profissão. Em 1973, decidiu fazer uma aposta radical, que pareceria antieconômica: largou o emprego prestigioso e bem pago na OIC e os dois voltaram para Paris. Salgado fazia fotos para a imprensa alternativa, voltada para comunidade de exilados, e trabalhos para agências de notícias, primeiro a Gamma, depois a Sygma. Cobriu a Revolução dos Cravos em Portugal, a guerra civil em Angola, fez uma viagem à América Latina. Em 1977, chegou à agência Magnum, fundada por Robert Capa e Cartier-Bresson 30 anos antes, e que até hoje é uma espécie de “olimpo” do fotojornalismo.

Em março de 1981, contratado pelo The New York Times para fazer uma reportagem sobre os cem dias da posse do presidente Ronald Reagan, o destino o colocou como único fotógrafo diante da tentativa de assassinar a tiros o presidente. Salgado estava com a câmera no olho, fotografando Reagan na saída pelas portas do fundo de um evento, quando começou a ouvir os estampidos; mesmo sem entender direito a coisa, ele seguiu disparando o obturador. Tinha feito várias chapas boas. As fotos lhe garantiram fama internacional Além do Times, a

Magnum vendeu as imagens a preço de ouro para todas as mais importantes publicações do planeta. Uma revista semanal francesa chegou a mandar um Boeing de Paris a Nova York, para buscar um único fotograma. A foto rendeu o suficiente para comprar o apartamento em que mora em Paris e um carro. Poucos dias depois, Salgado conheceu um fotógrafo que era famoso como o único que tinha documentado a morte de John Kennedy, duas décadas antes. Esse feito constava em seu cartão de visitas, como a credencial junto ao nome.

5-familia-ashaninkaFamília Asháninka, Estado do Acre, Brasil, 2016.

O brasileiro pensou: “Não quero passar à história como o cara que fotografou o atentado contra Reagan”. Depois de algumas semanas de grande procura pelas fotos, decidiu reprimir radicalmente a oferta: arquivou os negativos em um cofre e prome- teu a si mesmo que não venderia mais as imagens. A partir de meados dos anos 1980, Salgado decidiu deixar o jornalismo e apostar em megaprojetos, de longa maturação e impacto poderoso: Trabalhadores, Êxodos, Gênesis e agora, Amazônia, a uma média de dez anos para completar cada projeto. Logo depois de Trabalhadores, ele propôs a Magnum organizar um departamento dedicado a produzir projetos como os seus. Como não se entenderam, Salgado saiu, em 1994, e montou sua Amazonas Images, dedicada a viabilizar apenas seu próprio trabalho.


Como sócio da Magnum (entre 1979 e 1994), Sebastião Salgado conviveu com Henri Cartier- Bresson, que é sempre considerado um dos íco- nes da fotografia do século 20. Ficaram amigos. O francês convidou Lélia Wanick para reeditar uma de suas obras mais famosas, o livro de fotos da Índia. A obra ganhou outra alma, inclusive com o acréscimo de mais fotos, pela mãos da curadora brasileira. Bresson é autor do conceito de “instante decisivo”, como ele define os momentos especiais em que uma imagem concen- tra ao mesmo tempo uma cena notável e elementos que compõem uma foto perfeita.

Salgado nega que suas fotografias sejam representações de “instantes decisivos”. Para explicar seu método de trabalho, ele usa um modelo econômico, uma “curva de sino”: diz que o trabalho vai evoluindo, crescendo, ele capta centenas, talvez milhares de imagens surpreendentes, de “momentos decisivos” a cada dia, às vezes se dedica por uma hora ou mais em torno de uma cena ou objeto até obter o fotograma perfeito: “Eu faço uma imersão na cultura dos locais que documento, fico um período longo em que a qualidade das imagens cresce com a convivência; até que em um certo momento, começa a ser ocioso, a curva começa a baixar. Meu trabalho se desenvolve ao longo de todo esse processo, não em um ‘instante decisivo’.”, explica Salgado.

sebastiaosalgadoXamã Yanomami em ritual durante a subida para o Pico da Neblina, 2014.

Muitos momentos ocorrem na selva, durante caçadas ou caminhadas; outras vezes, em “estúdios”, que Salgado improvisa, criando fundo infinito com folhagens ou lonas enceradas. Depois de algumas semanas, conclui que há pouco a explorar, a curva de novidades começa a cair. Logo chega a hora de se despedir. Entre as comunidades da Terra Indígena do Xingu (Mato Grosso), ele ficou três meses; com os Zo’é, no Pará, esse tempo foi de dois meses. Já com os Korubo, no oeste do Amazonas, ele ficou um mês, trabalhando com esses indígenas conhecidos como “índios caceteiros”. Ao todo, Amazônia levou cerca de 8 anos de dedicação exclusiva do fotógrafo (a exposição inclui também fotografias produzidas antes, em 1998 e 2009).

A melhor definição da sensação de viver com um grupo indígena quase isolado durante uma longa expedição está contida na frase de Sebastião Salgado quando diz: “Eu fiz uma viagem ao paraíso”, sobre a experiência entre os Zo’é, indígenas de língua Tupi, do norte do Pará, conhecidos pelos bodoques cônicos usados no lábio inferior. Na época, o fotógrafo produzia Gênesis e planejava Amazônia. Fo- ram dois meses dormindo, comendo, andando e acompanhando as caçadas do grupo, visitan- do suas diversas comunidades.

A sensação se repetiu em 2017, quando visitou as comu- nidades da etnia Korubo, falantes de língua Pano, na Terra Indígena Vale do Javari (oeste do Amazonas). Quatro grupos Korubo contataram os “homens brancos” desde 1996, quando estavam fragilizados por do- enças ou ataques de inimigos. Salgado e sua equipe foram os primeiros forasteiros a coabitar por tanto tempo com os Korubo. Em 2018, o fotógrafo voltou ao Vale do Javari para documentar a vida em várias comunidades da etnia Marubo. Na aldeia de Maronal, ele entregou aos moradores uma coleção de foto- graFias feitas 20 anos antes. Foi um momento lúdico, profundamente ético, em que o fotógra- fo devolve aos seus fotografados as imagens que fez deles. O resultado é uma sessão intensa de sentidos sobre a passagem do tempo e da vida.

“Eu faço uma imersão na cultura dos locais que documento, fico um período longo em que a qualidade das imagens cresce com a convivência”

A vida do fotógrafo na selva, acompanhando o dia a dia de uma comunidade tradicional, lembra o verso do poeta espanhol Antonio Machado: “Caminhante, não há caminho”, o caminho é feito ao seguir os passos dos rápidos dos indígenas. Eles conhecem pro- fundamente as trilhas, como se tivessem em mente um Waze da floresta. Mas o foras- teiro corre atrás sem saber muito bem para onde seus guias o estão levando. Salgado os segue carregando um pesado equipamento com duas câmeras, com os quais flagra as atividades mais diversas do cotidiano: caçadas, pescarias, coleta de frutas, aber- tura ou colheita nas roças.

3---Indígena-Asháninka
Indígena Asháninka, Estado do Acre, Brasil, 2016.

Algumas atividades envolvem longas estadas sem acam- pamentos na floresta. Em suas expedições, Sebastião Salgado acompanhou diversas dessas incursões, que dão oportunidadepara documentar também momentos de intensa emoção, como em uma Sinfonia Pastoral em imagens em preto e branco: os sentimentos alegres diante da chegada ao campo, cenas à beira de um igarapé, as brincadeiras campestres, a tempestade amazônica e a graça geral após a chuva. O ambiente da floresta é escuro, as copas das árvores formam um teto que bloqueia a entrada de boa parte da forte luz amazônica. A plena luz do sol é captada pelo fotógrafo em sobrevoos de helicóptero que ele fez em muitos pontos diferentes da Ama- zônia. Ali de cima, além do brilho do sol, Salgado documenta o traçado dos grandes rios, o relevo quase desconhecido das grandes montanhas, algumas das maiores do país, como o Pico da Neblina que ele subiu acom- panhando um grupo Yanomami.

Do alto, sobre a floresta lá embaixo, Salgado testemunhou também (e documentou quase como um cientista) a for- mação dos chamados “rios voadores”, os intensos ventos que carregam nuvens da evaporação da floresta, formando grandes corredores brancos, cheios de água na forma de vapor, seguindo em grande velocidade do norte para aregião Sudeste, onde vão cair como chuvas e irrigar o sudeste. Há algo profundamente incômodo ao ver as foto- grafias de Amazônia ao mesmo tempo em que o go- verno brasileiro se dedica ostensivamente, por atos e omissões, a destruir os direitos, as culturas e as vidas indígenas.

SA_PA00295-Sebastiao-Salgado-Amazonia-295Rio Jutaí, Estado do Amazonas, Brasil, 2017.

Como na canção de Gilberto Gil, enquanto alguns desejam os beijos da sereia, outros querem seu rabo para a ceia. Embora sejam recentes, as imagens mostram um mundo em rápida destruição: os indígenas mudam aqueles hábitos, as queima- das alteram aquele ambiente, grileiros e garimpeiros invadem aquelas terras e ameaçam a vida daqueles indígenas retratados ali. Eles são arquétipos da hu- manidade. Diante dessas imagens, não há neutra- lidade possível: o espectador quer a sua preservação ou é conivente com o genocídio? O fotógrafo não tem dúvida: “Tenho a esperança de que minhas foto- grafias traduzam essa generosidade da Amazônia”.

A exposição com as fotografias do projeto Amazônia, como as que ilustram estas páginas, chegou ao Brasil em fevereiro de 2022, ocupando um amplo espaço do Sesc Pompeia, em São Paulo, e deve rodar por várias capitais do país. O livro de mesmo nome foi lançado pela editora Taschen, em 2021 em português e outras línguas.

“Voltando para fazer essas fotografias eu constatei uma grande ferida na Amazônia, ela estava machucada. Vi regiões que, naquela época, eram florestas totalmente virgens, já bem destruídas”