Stephanie Al-Qaq: Apoiamos o acesso do Brasil à OCDE, se esse for o desejo do país. Acreditamos isso será benéfico
Embaixadora do Reino Unido no Brasil aponta para a criação de uma agenda ampla de cooperação bilateral.
Stephanie Al-Qaq foi nomeada Embaixadora de Sua Majestade na República Federativa do Brasil em novembro de 2022 (Foto: Divulgação)
Stephanie Al-Qaq é a atual embaixadora de Sua Majestade, o Rei Charles III, na República Federativa do Brasil. A nomeação para o cargo veio em novembro de 2022, mas a experiência e bagagem em trabalhos internacionais vieram 20 anos antes, quando ingressou na diplomacia. Em sua trajetória, Stephanie contabiliza passagens como enviada ao Irã, onde atuou como diretora de Segurança Regional no Ministério de Assuntos Estrangeiros, Commonwealth & Desenvolvimento (FCDO). Antes disso, foi diretora do Departamento de Oriente Médio e Norte da África do Ministério.
O ingresso para a diplomacia veio após vasta vivência em organizações não-governamentais e governamentais como Reuters, Anistia Internacional, Human Rights Watch, Câmara dos Comuns e Departamento de Desenvolvimento Internacional, tendo atuado em vários países do Oriente Médio, da África, da Europa e das Américas. Nesta entrevista exclusiva, a embaixadora detalha todo o potencial do relacionamento entre as duas nações, enumera iniciativas que estimulam uma aproximação que vai além do âmbito comercial.
Revista LIDE: Quais os principais pontos que estreitam a relação comercial, política e cultural entre Reino Unido e Brasil neste momento?
STEPHANIE AL-QAQ: Reino Unido e Brasil são parceiros históricos. Fizemos questão, inclusive, de comemorar no ano passado, a participação de um britânico, o Lord Cochraine, na luta pela independência do Brasil. Ou seja, esta é uma parceria que prossegue há dois séculos. Antiga e forte é também a relação comercial entre os dois países, que somente no período de junho de 2021 e junho de 2022, contabilizou 6,5 bilhões de libras no comércio total de bens e serviços (exportações mais importações).
Isso representa aumento de 19,1% (ou 466 milhões de libras) em relação ao mesmo período do ano anterior. É uma parceria que se desdobra em várias iniciativas para além da área de comércio. Na área de educação, por exemplo, o Chevening, nosso programa de bolsas de mestrado em universidades britânicas, é uma referência. O Reino Unido já concedeu cerca de 2 mil bolsas de estudo integrais para brasileiros, cerca de 50 pessoas dos 15 distritos do país foram selecionados para estudar em 24 universidades na Inglaterra, na Escócia e no País de Gales.
Existem potencialidades que ainda não foram trabalhadas, mas que estão no radar do Governo Britânico?
Na área comercial, uma potencialidade que enxergamos é o Acordo para evitar Dupla Tributação (ADT), que assinamos com o Brasil no fim do ano passado. O objetivo é que a ren- da seja tributada ou no país de origem ou no país de destino, proporcionando segurança tributária e previsibilidade às empresas. Esse acordo depende de aprovação do Congresso Nacional. O ADT Brasil-Reino Unido tem o potencial de aumentar substancialmente o comércio e o investimento entre os dois países, além de fortalecer nossa relação bilateral. É uma resposta aos pedidos da comunidade empresarial de ambos os países.
Apoiamos o processo de acesso do Brasil à OCDE, se esse for o desejo do país. Acreditamos que esse passo será benéfico, uma vez que o país poderá fazer parte da formulação de políticas públicas da organização, algo que não se aplica aos países que não são membros. Essa é uma oportunidade importante para o Brasil, que poderá representar e articular a visão de países em desenvolvimento dentro da OCDE.
O atual governo brasileiro tem procurado reverter a imagem negativa no âmbito ambiental e social ao redor do mundo? De que maneira o governo britânico encara esse desafio do Brasil, considerando que o Rei Charles III é conhecido por seu ativismo na área?
Temos interesse em avançar na agenda de transição para uma economia de baixo carbono com cooperação e parcerias estratégicas para ambos os países, à medida em que enfrentamos o desafio das mudanças climáticas. Atualmente, investimos mais de 260 milhões de libras em clima por meio do Financiamento Climático Internacional (ICF). Isso inclui agricultura de baixo carbono, proteção das florestas, transição energética e infraestrutura sustentável. O ICF ajuda os estados brasileiros a combater o desmatamento, restaurar terras degradadas, melhorar a produtividade agrícola e a qualidade das cidades e de suas infraestruturas.
Além disso, trabalhamos na estreita colaboração com os governos estaduais, com algumas das principais instituições científicas do Brasil, com o Ministério da Agricultura, o Ministério do Meio Ambiente, o BNDES e outras instituições. Dialogamos com cidades e estados para apoiar seus planos de transição para uma economia de baixo carbono. Atualmente, 12 estados, mais de 40 cidades e 200 empresas integram a Campanha Race to Zero no Brasil. Na COP27, cinco estados apresentaram seus planos de ação sobre como vão zerar as emissões de gases de efeito estufa até 2050.
Também vale destacar uma parceria com o Programa Rural Sustentável, que investe mais de 60 milhões de libras no Brasil. Temos contribuído para evitar o desmatamento ilegal por meio do aumento da produtividade no uso da terra, fato que proporcionou a diminuição da pobreza no meio rural.
“Apoiamos o processo de acesso do Brasil à OCDE, se esse for o desejo do país. Acreditamos que esse passo será benéfico”, diz Stephanie Al-Qaq.
Quando falamos em energia, em quais outros setores importantes o governo britânico tem atuado junto ao Brasil?
O setor de energia eólica com turbinas em alto mar (offshore wind) é um dos casos mais claros de sucesso de nossa cooperação. Por meio de missões técnicas e comerciais, estudos e compartilhamento de políticas, conseguimos facilitar a abertura de mais esse caminho para garantir uma segurança energética de baixo carbono no Brasil. Agora, vemos que o Brasil tem bases muito mais robustas para que essa tecnologia deslanche e continuemos a trabalhar para conectar as duas economias nesse segmento.
Já o setor de hidrogênio de baixo carbono, é outro âmbito em que temos intensificado a nossa parceria. Da mesma maneira que fizemos com offshore wind, temos trabalhado com o governo para compartilhar nossa experiência, principalmente em governança e infraestrutura, também por meio de missões comerciais, estudos e cooperação técnica. É bem claro o potencial que o Brasil tem nessa área e a oportunidade que surge para garantir um setor energético descarbonizado e estável – não só para o Brasil e o Reino Unido, mas para o mundo todo.
Como diplomata, qual a importância de ter trabalhado em várias organizações como Anistia Internacional e Human Rights Watch?
Cada experiência foi como um “tijolo” na minha trajetória profissional. Foram ambientes que tiveram enorme contribuição para a diplomata que me tornei. Em organizações não-governamentais, aprendi a dimensão de valores como a proteção dos direitos humanos, resolução de conflitos e a importância da lei internacional para a construção de um mundo mais justo.
Apesar de ter alguma experiência no setor privado, a minha trajetória profissional revela como estar no setor público me inspira. E na diplomacia eu encontrei o ambiente que me motiva a trabalhar duro todos os dias. Impossível avaliar o quanto eu aprendi nos países por onde passei. Lições como a importância de ouvir, de respeitar as diferenças, de valorizar a diversidade e encontrar caminhos a partir do diálogo.
Em meio a um grande debate sobre equidade racial e de gênero, a senhora é a primeira mulher a assumir como embaixadora da Grã-Bretanha em Brasília. Como a embaixada procura atuar nestas questões?
Desde que cheguei ao Brasil, em dezembro, tenho enfatizado o quanto é importante fazer a diferença na relação entre o Reino Unido e o Brasil. Descobri que ser mulher é uma vantagem em muitos contextos profissionais, inclusive no Oriente Médio, que costuma ser considerado um ambiente dominado por homens. As negociações, sejam políticas ou econômicas, tornam-se mais produtivas, na minha opinião, quando têm mulheres à mesa.
É ótimo ver um número crescente de mulheres em cargos de liderança no Brasil, do comércio à diplomacia. Ainda há um caminho a percorrer para a igualdade, como existe no Reino Unido, mas estamos nesse percurso. Ter exemplos de destaque – femininos e masculinos – é fundamental. O Ministro da Educação do Brasil e eu jantamos há alguns dias e, enquanto olhávamos ao redor da mesa, vimos uma equipe predominantemente feminina de mulheres talentosas.
Atualmente, com mulheres ocupando 30% dos cargos de chefe de Missão ao redor do mundo e 42% dos cargos na diplomacia, o Reino Unido se empenha em apoiar a participação feminina em espaços de liderança e tomada de decisão e em diminuir as lacunas de direitos entre homens e mulheres. Em Brasília, temos agora mulheres liderando Embaixadas de grandes economias, como o próprio Reino Unido, os EUA e a Austrália. Este é um excelente sinal - e é preciso reconhecer que é o resultado de lutas históricas.
Durante a cerimônia de posse do cargo, em Brasília, a embaixadora formalizou compromisso pela bilateiridade. (Foto: Divulgação)
O que a senhora diria para meninas brasileiras e jovens estudantes e profissionais que sonham com a carreira diplomática?
Eu diria que esta é uma carreira muito enriquecedora. Você conhece pessoas, lugares, culturas e atua para aproximar os países. Ou seja, o seu trabalho tem um reflexo direto para construção da paz, do progresso e da prosperidade para os povos.
É um trabalho muito estimulante, mas também é preciso ter em mente que não é simples se mudar de país com alguma frequência e às vezes é preciso lidar com questões complexas e tomar decisões difíceis. Eu estimulo muito as meninas que querem ajudar a mudar o mundo a causar ações propositivas por meio da diplomacia. Acho que com mais mulheres no mundo diplomático teremos uma sensibilidade maior para a urgência das questões relacionadas à igualdade de gênero e à criação de oportunidades para que meninas possam ser aquilo que sonham ser. Desejo que as jovens de diversas origens socioeconômicas e étnicas enxerguem na diplomacia um sonho possível e uma ferramenta de transformação do mundo.
O presidente Lula disse recentemente que teve ‘excelentes relações’ com Reino Unido ao longo do reinado de Elizabeth II, o que podemos esperar nos próximos anos no que tange acordos, parcerias e projetos em comum?
Tenho plena certeza de que a Rainha Elizabeth II era muito amada pelo povo brasileiro. Sua partida foi um momento de dor para seus admiradores no mundo e aqui no Brasil não foi diferente. Ela fez muito pela união dos povos e seu legado como uma das monarcas mais importantes da história será sempre lembrado.
Agora, temos um Rei que ama o Brasil e já veio quatro vezes ao país, quando ainda era Príncipe. O governo Lula tem dado indícios positivos em áreas como a proteção do clima e dos direitos dos povos indígenas, valores que são muito conectados aos do Rei Charles III. Então, diria que nessa área específica temos possibilidades de parcerias e projetos para o futuro.
Queremos dar continuidade às parcerias existentes e ampliar ainda mais as nossas ações por aqui. Vamos seguir os caminhos que já estão dando certo na nossa atuação no Brasil. Em relação a áreas temáticas, destacaria: clima e meio ambiente, empreendedorismo digital, educação, ciência, tecnologia e inovação. Na área de saúde, para tornar ainda mais eficaz o quadro de vacinação brasileiro, o Brasil vai sediar uma unidade da Universidade de Oxford. A instituição será dedicada a pesquisas em saúde, desenvolvimento de vacinas e formação de pesquisadores na área. Será o primeiro campus da instituição fora do Reino Unido.
Stephanie Al-Qaq ao lado do presidente Luis Inácio Lula da Silva, durante cerimônia que oficializou os nove novos embaixadores no Brasil, incluindo o Reino Unido. (Foto:)
O que já chama atenção no Brasil na esfera cultural e comportamental?
Essa é a minha segunda passagem pelo Brasil. Estive aqui entre 2007 e 2012 como Conselheira Política e me apaixonei, tanto que voltar ao Brasil era um sonho que felizmente pude realizar. Apesar de já conhecer o país, sinto que viver aqui é uma constante descoberta de lugares, pessoas interessantes, comidas, músicas... É uma nação enorme e tão variada que a cada viagem que faço tenho a sensação de ter muito mais para conhecer e aprender - e essa foi uma das minhas maiores motivações para ter decidido voltar.
Desde que voltei, viajei ao Rio e a São Paulo algumas vezes. Também visitei pela primeira vez o estado de Minas Gerais. Sempre ouvia falar da hospitalidade e da gentileza dos mineiros e pude confirmar que realmente este é um povo maravilhoso. Minas é um lugar para trazer sossego à alma e alegria ao paladar. É também um estado que se aproximou muito do Reino Unido nos últimos anos, sobretudo, em torno da pauta ambiental. Quero voltar lá para estabelecer mais parcerias e conhecer cada vez mais a cultura mineira.
Na minha visita ao Pará, me deliciei com a culinária local. E uma das coisas que chamaram a atenção na região, foi a riqueza da música paraense. São tantos ritmos e artistas de diferentes gerações! Além disso, pude perceber que o povo paraense tem muito orgulho de suas raízes.