Mauro Vieira: ‘Primeiro passo é reconstruir pontes com os nossos principais parceiros’
Em entrevista exclusiva, ministro das Relações Exteriores expõe o papel crucial na incursão brasileira de retomar protagonismo na diplomacia global.
Chanceler Mauro Vieira: ministroarticula para o Brasil retomarprotagonismo na diplomacia global (Foto: Antônio Cruz / Agência Brasil)
Fluminense de Niterói, Rio de Janeiro, Mauro Vieira graduou-se em Direito, pela Universidade Federal Fluminense (1973) e Diplomacia, pelo Instituto Rio Branco (1974). Concluiu doutorado honoris causa em Letras, pela Universidade de Georgetown, em Washington D.C. (2014). Antes de se consolidar na chancelaria brasileira, cuja carreira beira cinco décadas, Vieira atuou em diversos cargos de gestão pública em Brasília (DF). Além do Itamaraty, passou pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, e pelo Ministério de Previdência e Assistência Social. No exterior, atuou nos postos diplomáticos em Washington D.C (EUA); em Montevidéu (Uruguai); na Cidade do México (México); e em Paris (França).
passagens decisivas que o prepararam para, finalmente, comandar as representações brasileiras pelo globo. Foi embaixador na Argentina (2004-2010); nos Estados Unidos (2010-2015); na Croácia (2020-2022); e representante permanente do Brasil nas Nações Unidas, em Nova York (2016-2020). Também atuou como ministro das Relações Exteriores do Brasil, entre 2015 e 2016. Em janeiro, Mauro Vieira foi indicado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva para desempenhar a função de Ministro das Relações Exteriores do Brasil. Des-ta vez, recebeu a missão de reconstruir pontes diplomáticas e colocar o Brasil como um agente global de influência nas áreas ambiental, social e econômica. Confira a entrevista exclusiva à Revista LIDE:
Revista Lide: O que prioritariamente simboliza as relações diplomáticas entre EUA e Brasil?
MINISTRO MAURO VIEIRA: As relações bilaterais com os EUA aproximam-se da celebração do bicentenário, marca que fala por si. São séculos anos de uma permanente construção de laços e de abertura de espaços de cooperação. Estamos falando de uma das mais tradicionais, mais complexas e ricas parcerias do Brasil, que vai muito além do papel dos Estados e é caracterizada por grande vitalidade na interação entre as sociedades como um todo.
A visita do presidente Lula a Washington, em fevereiro, na segunda viagem dele ao exterior desde a posse, em seu terceiro mandato, marcou o relançamento da relação no nível adequado, que é o de uma parceria estratégica que faz jus ao nome, com densidade e rumos claros. Desde então, o trabalho de seguimento, em diversas áreas, como a diplomática, a econômico-comercial e a de meio ambiente, para citar algumas, tem sido intenso e produtivo.
Reconstruir pontes com nossos principais parceiros foi a tarefa prioritária que recebi do presidente Lula em dezembro, quando fui convidado para assumir novamente a chefia do Itamaraty. Com os Estados Unidos, os canais de diálogo foram reabertos já nos primeiros dias da gestão, e agora as energias estão con- centradas na busca de resultados concretos e na abertura de novas frentes de cooperação.
E o que pode ser melhorado?
Relações como a do Brasil com os Estados Unidos são obras em permanente evolução, e após o recente período de afastamento, verificado em parte da gestão anterior, e determinado por um sectarismo que é estranho à tradição diplomática brasileira, o diálogo volta a acontecer. A página do sectarismo foi virada, e nossos principais parceiros, entre eles os Estados Unidos, já entenderam e saudaram essa mudança, que na verdade é uma retomada das tradicionais linhas de política externa do Brasil. Nelas, não há espaço nem para sectarismos e tampouco para alinhamentos automáticos, com quem quer que seja. Esse é o primeiro passo para a identificação de novas oportunidades, e para a manutenção do trabalho em torno das prioridades da pauta bilateral. Temos que recuperar o tempo perdido, e há grande potencialidade a desenvolver em áreas como as das novas fronteiras da ciência e da tecnologia, e também da sustentabilidade ambiental.
O gesto norte-americano de somar-se ao Fundo Amazônia, anunciado durante a visita do presidente Lula a Washington, tem grande potencial de converter-se em um promissorespaço de cooperação.
Além disso, somos dois países que acabam de superar fortes testes de estresse no campo institucional, e cujas democracias resistiram a orquestrações antidemocráticas e tentativas de uso da desinformação em massa como arma a serviço de extremismos políticos. Nesse âmbito de diálogo, temos muitas experiências a compartilhar, e as instituições democráticas brasileiras podem se orgulhar do trabalho realizado nos últimos anos.
Divergências de interesses e de opinião entre países grandes e complexos, como é o caso de Brasil e Estados Unidos, acontecerão, e precisam voltar a ser encaradas como normais
Ministro das Relações Exteriores assumiu a missão ampliar o diálogo com parceiros comerciais. (Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil)
Nesta perspectiva, quais os principais acordos e projetos de cooperação que podem aproximar ainda mais os dois países no âmbito comercial e da diplomacia?
Além do seu peso no âmbito regional, que ao longo da história contribuiu para solucionar, pela via do diálogo, inúmeras situações de crise em diferentes países amigos, Brasil e EUA não podem deixar de exercer, neste momento crítico para o planeta, um papel de forte liderança no debate sobre as mudanças climáticas e sobre soluções voltadas à sua mitigação. Já se perdeu muito tempo, nos últimos anos, com o imobilismo e o negacionismo, inclusive em Brasília e em Washington, nas gestões dos antecessores dos atuais presidentes, e não há mais tempo a desperdiçar.
Nesse sentido, com os presidentes Lula e Biden, ambos os países voltaram a ocupar a liderança que a comunidade internacional espera nesse debate, e a colaboração em torno de projetos do Fundo Amazônia é uma boa notícia. Mas o debate sobre a mudança climática exigirá amplas discussões, e o governo Lula está preparado para dar sua contribuição, em cooperação com os Estados Unidos e com todos os parceiros que estejam comprometidos com a busca de soluções para esse que é um desafio existencial para a humanidade. Não é um dilema qualquer, a mudança climática põe em risco nossa própria viabilidade no futuro, e isso requer respostas sérias, orientadas pelas melhores evidências científicas disponíveis, e não curandeirismo ambiental ou terraplanismo diplomático. Já tivemos disso nos últimos anos, foram anos perdidos, um tempo precioso jogado fora.
Quais barreiras e conflitos geram ruídos nessa relação?
Divergências de interesses e de opinião entre países grandes e complexos, como é o caso de Brasil e Estados Unidos, acontecerão, e precisam voltar a ser encaradas como nor
mais. Ou seja, divergências, ou ruídos, são dados normais em relações bilaterais densas e importantes como as nossas, e para isso existe a diplomacia. Não precisamos concordar em tudo, o que é importante é saber lidar de forma madura com eventuais divergências.
Não vejo, no atual momento, conflitos no horizonte. O que percebo, às vezes, é que divergências naturais tendem a chamar a atenção da mídia e da opinião pública, talvez desacostumadas com a tradicional política externa brasileira, que põe o interesse nacional em primeiro lugar. Como já disse, no mundo de hoje, e na posição que o Brasil ocupa, não faz sentido optar por alinhamentos automáticos com quem quer que seja. Nosso país tem uma diplomacia competente, reconhecida internacionalmente, bem conectada com os interesses da sociedade e dos agentes econômicos, e que vai estar à altura, mais uma vez, dos desafios da realidade internacional. Vai fazer isso, como sempre fez, como representante de um país que se respeita e que não anda a reboque dos interesses de outros atores da comunidade internacional.
No campo da geopolítica, quais são os acordos, aproximações e posicionamentos que podem beneficiar o Brasil já nos próximos anos?
O primeiro passo foi o de reconstruir pontes com os nossos principais parceiros, que estavam muito danificadas. É preciso reconhecer e reparar os estragos de uma política externa totalmente alheia à boa tradição diplomática do Brasil. A partir de agora, trata-se de concentrar os esforços na relação com cada país ou bloco, nas questões prioritárias para o Brasil, em matéria de promoção do desenvolvimento econômico e humano, de defesa da paz e do fortalecimento da integração regional, que são mandamentos constitucionais e prioridades em matéria de política externa. A elas, somam-se os desafios da reconstrução do multilateralismo, diante da crise de instituições fundamentais como as Nações Unidas e a Organização Mundial do Comércio, as negociações comerciais pendentes, como a do Mercosul com a União Europeia, e as urgências do debate sobre a sustentabilidade ambiental e a mudança climática.
A futura presidência brasileira do G20, a partir de dezembro próximo, vai oferecer ao Brasil a oportunidade de propor à comunidade internacional novos caminhos para o debate dessas questões prioritárias. Já estamos trabalhando, desde o primeiro dia do governo Lula, na preparação do Brasil para assumir essa grande responsabilidade, mas ela também oferece ao país uma posição privilegiada para influir no diálogo global em um momento histórico que requer decisões corajosas e criativas aos desafios da humanidade.
Quais diferenças existem na política externa, no comparativo com o primeiro governo Lula e seu atual mandato?
As linhas e princípios de política externa se mantêm em sintonia com o interesse nacional, mas é claro que há mudanças relevantes na realidade global. Saberemos responder a elas com base nos nossos princípios e no interesse nacional.
São muitas as diferenças, e é preciso estar atento. Entre elas, destacaria a crise do sistema multilateral, que precisa ser enfrentada. Nesse contexto de crise, torna-se muito mais difícil buscar soluções para a guerra na Ucrânia, por exemplo. Nossa condenação à invasão ao território ucraniano pela Rússia é inequívoca, mas isso não basta, é preciso buscar saídas para o impasse.
O Brasil tem um compromisso histórico com o multilateralismo, que atravessa um período de grandes dificuldades e precisa reformar suas instituições. Não se trata apenas da ONU, nesse contexto da guerra na Ucrânia: a paralisia da OMC, nos últimos anos, é uma questão urgente também, porque abre espaço para medidas unilaterais e protecionistas que clara mente prejudicam nossos interesses no mundo.
Estamos falando do organismo que regula o comércio internacional e que dispôs, durante anos, mas não dispõe atualmente, dos meios para dirimir controvérsias comerciais entre seus membros. Para países como o Brasil, a OMC oferecia a possibilidade de defesa para nossos agentes econômicos diante da concorrência fora das regras do jogo, acordadas multi-lateralmente ou de medidas unilaterais ilegais, que restringem o acesso de nossos produtos a mercados importantes. É urgente e prioritário que a OMC tenha de volta as condições para operar plenamente.
Mauro Vieira ao lado do presidente Lula, durante a posse como ministro. Chanceler fala dos rumos do Brasil na diplomacia mundial. (Foto: Agência Brasil)
Qual o papel para o Brasil e para o presidente Lula em relação à busca pela paz entre a Ucrânia e a Rússia?
Nosso papel é o de contribuir para a busca da paz, como o presidente Lula tem reiterado desde sua posse, em janeiro, e esse objetivo já é plenamente reconhecido pelos nossos parceiros na comunidade internacional. Nos primeiros 90 dias de gestão, mantive cerca de 70 reuniões bilaterais com chanceleres, chefes de estado ou governo e outras autoridades internacionais de alto nível. Foram mais de 50 chanceleres, inclusive da Rússia, da Ucrânia e de seus principais aliados, e nenhum deles questionou a importância da atuação do Brasil em favor da cessação de hostilidades e da busca de meios de retomada do diálogo entre as partes em conflito.
Nas recentes viagens à China e à Europa, o presidente deu mais um passo nesse sentido, como já havia ocorrido na visita a Washington e nos contatos anteriores com líderes europeus, em Brasília. Não se esperam soluções mágicas ou imediatas, mas é preciso perseverar nesse caminho, desde já, juntamente com outros países comprometidos com o diálogo como solução para o conflito. Não é tarefa para uma nação apenas, o desafio de levar as partes à mesa de negociação requer um esforço coletivo, do qual o Brasil está a disposto a participar. E noto uma boa receptividade internacional nesse papel construtivo do Brasil, inclusive na primeira viagem do presidente à Europa, em abril, quando passou por Portugal e Espanha.