'Mesmo que medidas não sejam implementadas, decisões de investimento já foram impactadas', diz Lia Valls sobre política de Trump
Para a pesquisadora esses anúncios criam uma incerteza grande e uma confusão em termos de decisões de investimento.
Lia Valls, pesquisadora associada do FGV IBRE. (Foto: Marcelo Freire/FGV IBRE)
Qual sua avaliação sobre as primeiras medidas do governo de Donald Trump que afetam o Brasil?
Temos que tomar cuidado, pois o presidente Trump é imprevisível. No caso da taxação de aço e alumínio, se trata de uma medida que não tem a ver diretamente com o Brasil; é uma questão mais relacionada aos lobbies da siderurgia americana, que sempre pede proteção para essa indústria, que nos EUA realmente tem problemas de competição. O Brasil, por sua vez, está entre os dez maiores exportadores de produtos siderúrgicos para os EUA. Em seu primeiro mandato, Trump também colocou sobretaxas nesses produtos, que depois foram negociadas e conseguiu-se criar cotas. Desta vez, a expectativa é de que a sobretaxa entre em vigor dia 12 de março, mas até lá é possível negociar. A nosso favor, temos que lembrar que o Brasil tem uma empresa de siderurgia extremamente importante de siderurgia que tá dentro dos Estados Unidos, a Gerdau. Além disso, no Trump 1 a indústria automobilística americana reclamou dessas tarifas, pois aumenta seu custo. Será preciso esperar, como disse, qual margem de negociação haverá desta vez.
A outra medida que pode afetar o Brasil é o Reciprocal Trade and Tariffs, que foi anunciado dia 13 de fevereiro. Chamou a atenção o fato de Trump ter citado o Brasil neste momento, comparando a taxa de importação que o Brasil aplica ao etanol, de 18%, com a dos EUA, de 2,5%. É uma ideia meio estapafúrdia, posto que tarifas diferentes correspondem a estruturas produtivas diferentes, a interesses diferentes. Por isso, é realmente inusitada a ideia de se igualar tarifas. Acho pouco provável que isso aconteça. Se acontecer, lógico que o Brasil ficará em situação complicada, porque grande parte das nossas tarifas são maiores que as tarifas de importação americanas. Temos algumas exceções na agricultura, mas a maior parte das importações que temos dos Estados Unidos é da indústria de transformação, de maior valor adicionado. Como no comércio com o Brasil os EUA são superavitários, e nesse ponto não somos o alvo prioritário, acho que a pressão ocorrerá em produtos brasileiros que concorrem diretamente com os americanos nesse mercado. E no caso de empresas que têm interesse em exportar mais para o Brasil e podem alegar que não o fazem porque a tarifa brasileira é alta.
Há uma questão, entretanto, que vale ressaltar. Na análise de comércio exterior do Boletim Macro FGV IBRE de fevereiro, fiz referência a um levantamento importante feito pela Câmara Americana de Comércio (Amcham) que mostra que, apesar das tarifas do Brasil serem mais altas, na prática usamos muito o regime de exceção, que é o ex-tarifário. Por exemplo, se uma empresa diz que não consegue encontrar uma máquina no mercado brasileiro dentro das especificações que precisa, ela pode conseguir importar aquela máquina até com tarifa zero, a depender do caso. Também há o Recof, regime aduaneiro que também ajuda a importar mais barato; e o drawback, que permite suspensão de tributos sobre mercadorias que serão empregadas ou consumidas na industrialização de produtos a serem exportados. Para fins de negociação, esse é um argumento.
De qualquer maneira, esses anúncios criam uma incerteza grande. Mesmo que muita coisa não seja implementada, já se criou uma confusão muito grande em termos de decisões de investimento. Isso é um dos piores problemas.
Estar entre os países mais deficitários na relação comercial com os EUA não necessariamente ajuda o Brasil?
Sim, é verdade. Gostaria também de mencionar as críticas feitas quanto à posição da China, que afirmou que se defenderia na Organização Mundial de Comércio (OMC). O Brasil também mencionou a OMC, e muitos avaliaram como uma medida com pouca importância, diante da paralisação do órgão. Mesmo enfraquecida, entretanto, a OMC não acabou. É fato que mecanismo de solução de controvérsias da OMC não ajudará a resolver esse problema, pois os Estados Unidos não fazem parte dele. Mas considero importante esse anúncio como sinal de defesa da governança global.
Sobre nossas trocas comerciais, o Icomex do FGV IBRE referente a janeiro mostra um recuo de 5,7% das exportações em comparação a janeiro de 2024, em valor, enquanto as importações cresceram 12,2%. Em volume, as exportações recuaram 4,9% e as importações aumentaram em 14,6%. Como interpretar esses resultados?
De fato, observamos que o superávit brasileiro registrou importante queda em relação ao mesmo período do ano passado, de US$ 6 bilhões em janeiro de 2024 para US$ 2,2 bi este ano. Mas isso não é motivo de preocupação. O déficit comercial com a China (de US$ 582 milhões), por exemplo, não é uma coisa fora do comum. Se observar uma série histórica só do mês de janeiro, em vários momentos o Brasil registrou déficit com a China, pois os embarques de soja no determinado ano podem nem ter começado. O que chama a atenção em 2025 é o grande aumento de exportação para a Argentina, de mais de 70% em volume em relação a janeiro de 2024, concentrado no segmento de automóveis, gerando um superávit de US$ 326 milhões. Isso pode ser explicado pela desvalorização de nossa moeda em relação ao peso argentino. Parte desse efeito é possível constatar, por exemplo, no aumento do fluxo de turistas argentinos no Brasil.
Outro destaque é que a importação continua crescendo no segmento de bens capital e bens intermediários. Mas, como disse, esse é o resultado de apenas um mês, o que dificulta fazer projeções. Para ter uma ideia, o superávit projetado pela Secretaria de Comércio Exterior do MDIC para 2025 é entre R$ 60 bilhões e R$ 80 bilhões, um intervalo grande. Com o efeito Trump, tudo fica ainda mais incerto.
A Sondagem da América Latina divulgada em fevereiro, relativa ao quarto trimestre de 2024, demonstra uma piora do clima econômico na maioria dos países da região puxada pelas expectativas. A exceção mais marcante é a da Argentina, com melhora de 44 pontos no clima econômico. A que atribui esse salto?
Na Argentina, já no terceiro trimestre a sondagem indicou uma expectativa muito positiva caso Trump ganhasse. No quarto trimestre, observa-se uma melhora tanto na avaliação da situação atual quanto das expectativas.
A possibilidade de facilitação de um novo acordo com o FMI explicaria?
Acho que a ideia de que Miley estaria dentro do mesmo espectro de pensamento de Trump ajuda. Trump tirou os EUA do Acordo de Paris, não apoia a agenda ambiental, ESG, e Miley segue a mesma linha. Declarou, por exemplo, que tal como Trump nos EUA excluirá a Argentina da Organização Mundial da Saúde. Miley tampouco é adepto do multilateralismo. Acho que todo esse contexto colabora para um ambiente favorável a privatizações, por exemplo. Os argentinos consideram possível até
Que para o cenário para alguns é extremamente interessante, quanto mais privatização, embora a gente nem tenha mais tanta coisa assim para privatizar, né? Mas seria um ambiente mais favorável, vamos dizer, seria uma parceria mais favorável aos argentinos, né? Os argentinos acham até que é possível fazer um acordo comercial com os EUA (afirmou que poderia inclusive tirar a Argentina do Mercosul para isso), mas acho pouco provável. Um acordo de livre comércio seria uma contradição com a própria agenda de Trump.
Em contrapartida, há países que identificaram na eleição de Trump um risco, como é o caso do México. Com a eleição de Claudia Sheinbaum em 2024, sucessora de Lopez Obrador, de linha política mais de esquerda, a expectativa foi que pressão em temas como o da imigração, o que de fato se concretizou. No Brasil o efeito também foi negativo, mas menos intenso que no México. Aqui, prevaleciam ainda temas domésticos, como a preocupação com a política fiscal e o aumento de juros.
Novamente, destaco que o aumento da incerteza torna difícil vislumbrar um cenário positivo para o mundo em geral. No quarto trimestre de 2024, por exemplo, havia o receio muito grande da escalada da guerra comercial entre EUA e China, com Trump prometendo aumento de tarifa de importação para a China para 60%, e mais 10% no restante do mundo. O Peterson Institute, referência nos Estados Unidos, projetou que uma tarifa de 60% sobre produtos chineses impactaria o PIB do país em 2,5 pontos percentuais.
Também é preciso considerar que a China é forte investidora na América Latina, não?
Sim, é fato, e grande parte dos países aderiram à Rota da Seda – o Brasil é uma exceção – visando à garantia de investimento em infraestrutura. Comparando com o estoque de capital americano na região, o estoque chinês ainda é pequeno, ficando atrás inclusive do europeu.
Mas os chineses estão atrasados na implementação do plano da Roda da Seda na região – cujos programas são negociados bilateralmente com cada país. Estes, por sua vez, estão se questionando em que medida podem ser retaliados pelos EUA em função desses investimentos. Esse é o ponto sensível dessa história: como manter a neutralidade no atual cenário e da imprevisibilidade característica de Trump.
Tratamos muito de economia, mas temos que lembrar que há várias medidas sendo tomadas que mexem com outros temas como proteção aos povos originários, inclusive que foram pauta brasileira confirmada no G20, que valoriza questões como a aliança contra a fome e a pobreza, contra a desigualdade, que exigem cooperação internacional tal como para lidar com as questões climáticas. São questões que também acabam repercutindo na economia também.