Ela desafia estereótipos de gênero no Vale do Silício e transformou angústia no xadrez em livro
Kyla Zhao não tem, na função de autora, sua "profissão número 1", mas foi por meio da escrita que ela encorajou outras garotas ao xadrez. E, inclusive, lidou com seus próprios sentimentos quanto ao esporte. O romance "May The Best Player Win" (Que Vença o Melhor Jogador), da escritora de Cingapura, desafia o domínio masculino, inspirado em sua própria experiência.
A obra, que ainda não está disponível em português, tem como protagonista May Li. A garota faz parte do time de xadrez da sua escola e classifica a equipe para um torneio nacional, mas colegas e até mesmo seu amigo, Ralph, questionam suas habilidades. Ela, então, reage com o ímpeto de querer vencer a todo custo, o que provoca a ansiedade e a faz questionar se há como se divertir quando se joga para ganhar.
A autora é formada pela Universidade Stanford com mestrado em Comunicação (Estudos de Mídia) e bacharelado em Psicologia. Daí também uma pouco da compreensão que Kyla tem sobre o mundo. Defensora da representação asiática e equidade de gênero, a cingapurense foi uma das homenageadas da Forbes Under 30 e foi nomeada uma das Líderes do Amanhã pela revista Tatler.
A história de resiliência de Kyla não apaga a angústia vivida pela pressão em competir no xadrez. Hoje, ela joga apenas casualmente, com amigos. Os torneios já não fazem parte da rotina.
O que você acha que causa essa competitividade focada no resultado e até deixando de ter o prazer no xadrez, que você relata na trama?
Mesmo quando eu era jovem, já era bastante óbvio para mim que xadrez era um esporte muito dominado por homens. E, às vezes, as jogadoras simplesmente não eram consideradas tão boas quanto os homens. Como resultado, acho que senti que meninas como eu não tinham permissão para pertencer ao mundo do xadrez. Então, me esforcei muito para provar que eu pertencia e achei que a única maneira de fazer isso era vencendo, conquistando mais medalhas, ganhando mais troféus. Acabei me focando muito na vitória e, em certo ponto, simplesmente esqueci por que comecei a jogar xadrez em primeiro lugar - que era por diversão e prazer. Fiquei tão obcecada em ganhar que deixei de lado a parte divertida do jogo. E acho que esse é um problema muito comum entre muitos jogadores.
Quando você se foca tanto nos resultados, acaba esquecendo o prazer que o jogo proporciona. E, especialmente agora, com o xadrez se tornando um esporte cada vez mais jovem, os jogadores estão começando mais cedo e, às vezes, podem não ser maduros o suficiente para lidar com tudo isso. Parte da história foi inspirada na minha experiência real, mas outra parte foi bem diferente. Porque, por causa de todo o estresse e ansiedade de desempenho, acabei abandonando o xadrez quando tinha cerca de 14 ou 15 anos. No meu livro, minha personagem principal, May, passa pelos mesmos problemas, mas decide se abrir com seus pais e amigos, e recebe o apoio e a ajuda de que precisa - algo que eu não tive quando era mais jovem. Eu simplesmente não contei a ninguém como me sentia.
Você sente que "May The Best Player Win" ajudou você a lidar com esse sentimento?
Essa é uma pergunta muito boa. Acho que, quando eu era mais jovem, não tinha força nem confiança. Não queria contar a ninguém como me sentia, não queria admitir que o xadrez estava me causando muito estresse, porque achava que isso me faria parecer fraca. E eu sentia que não podia me dar ao luxo de parecer fraca, especialmente quando achava que estavam duvidando das minhas habilidades.
Então, não contei aos meus pais, nem aos meus treinadores, guardei tudo para mim. E, sendo sincera, naquela idade, eu não era madura o suficiente para lidar com isso sozinha. Por isso, a única solução que encontrei foi me afastar do xadrez, e foi assim que parei de jogar competitivamente. Então, de certa forma, você está certo ao dizer que há um tipo de projeção na minha história. Eu dei à minha personagem principal a força - ou pelo menos a abertura - que eu não tive quando era mais jovem. E é por isso que a trajetória dela no xadrez teve um final diferente do meu.
De volta ao ponto sobre meninas e mulheres no xadrez. Como você avalia que podemos superar essa discrepância no tratamento de gênero e tornar o esporte menos masculinizado?
Acho que tudo começa com o fato de não termos expectativas mais baixas para meninas e mulheres. Não sei o quanto você está familiarizado com o mundo do xadrez e seu sistema, mas existem diferentes títulos para jogadores. Você tem, por exemplo, o título de Grande Mestre (Grandmaster), e existe também o título de Grande Mestre Feminina (Women Grandmaster), que é um título exclusivo para mulheres. Mas os requisitos para conquistar o título de Grande Mestre Feminina são significativamente mais baixos do que os para se tornar um Grande Mestre.
Isso passa a ideia de que as mulheres não são capazes de alcançar as mesmas coisas, e que por isso é preciso reduzir as exigências para que elas também possam ter um título. Embora a intenção por trás desse título possa ser encorajadora e motivadora para jogadoras femininas, na prática, isso pode ter um efeito oposto. Crianças são muito inteligentes e, quando percebem esse tipo de diferença, começam a se questionar: "Por que as meninas conseguem conquistar algo com requisitos mais baixos?" Isso pode fazer com que as meninas duvidem de si mesmas - e os meninos também comecem a duvidar das meninas. É um problema estrutural. Mas há muitos treinadores incríveis por aí que incentivam as jogadoras femininas e que sequer enxergam o gênero como uma barreira.
Essa questão de expectativa é algo que vemos muito aqui no Brasil no futebol.
Sim. Eu também jogo futebol. Não sei se vocês chamam de "football" ou "soccer" (risos).
Normalmente, "soccer", no inglês, mas "futebol" em português.
Eu venho de Cingapura, que foi uma colônia britânica, então lá chamamos de "football". Mas agora moro nos Estados Unidos, e aqui todos chamam de "soccer". Jogo futebol e, na verdade, um dos personagens principais do meu livro, Mario, que se torna amigo da May, é o capitão do time de futebol. Foi muito interessante escrever sobre os dois esportes, porque eu jogo os dois e percebi que há muitas semelhanças entre xadrez e futebol. Conforme fui escrevendo, essas semelhanças ficaram ainda mais óbvias para mim.
Um ponto que você também toca é sobre a representatividade asiática. Como você avalia essa representatividade no Ocidente?
Essa é uma ótima pergunta. Acho que, no passado, as pessoas achavam que personagens asiáticos só podiam ter certos tipos de papel, como o do aluno exemplar ou o da mãe imigrante. Mas, para mim, a representação asiática significa que não precisamos estar limitados a determinados perfis. Podemos ser qualquer coisa: um jogador de xadrez asiático, um dançarino asiático, um médico asiático. A ideia é que não devemos ficar presos a certos papéis ou histórias pré-determinadas.
No meu livro Made the Best Player Win, minha personagem principal é chinesa, mas isso é apenas um aspecto dela. Não define as decisões que ela toma, o que ela escolhe fazer ou seus interesses. É só uma parte dela, e todos ao seu redor aceitam isso naturalmente.
Além do xadrez, futebol e literatura, você tem uma carreira em tecnologia, certo?
Trabalho em uma empresa no Vale do Silício, e minha função envolve uma mistura de estratégia, comunicação e marketing.
Qual o próximo plano para sua escrita? A ideia é ir além do esporte?
Meu próximo livro será lançado em 2026, pela mesma editora, Penguin Random House. Dessa vez, é uma ficção histórica para o público jovem adulto. A história se passa em Chinatown, em São Francisco, no ano de 1949, e trata da rivalidade entre duas gangues de lá.