Clima extremo tem aumentado número de mortes evitáveis no Brasil e no mundo

Pesquisa identificou mais de 34 mil óbitos ligados a calor e frio intensos na Índia e alerta para riscos em outros países, incluindo o Brasil.

close-up-thermometer-showing-high-temperaturePesquisa identificou mais de 34 mil óbitos ligados a calor e frio intensos na Índia e alerta para riscos em outros países. (Foto: Freepik)

Um estudo publicado em maio na revista científica Temperature revela como o calor e o frio extremos têm matado pessoas silenciosamente — e de forma desigual. Ao analisar dados de mortalidade na Índia entre 2001 e 2019, pesquisadores identificaram que mais de 34 mil pessoas morreram por causas diretamente ligadas ao calor e ao frio intensos. A Índia foi escolhida como objeto de estudo por sua combinação de vulnerabilidades — alta densidade populacional, pobreza, urbanização desordenada e mudanças climáticas aceleradas —, características que ressoam no Brasil.

Além do número absoluto de mortes, a pesquisa revela um padrão importante: homens em idade produtiva foram os mais afetados pelo calor extremo, enquanto as mortes por frio foram distribuídas entre os gêneros. A mortalidade foi particularmente alta em estados com menor urbanização e menor gasto público social, sugerindo que infraestrutura urbana e proteção social podem funcionar como escudos contra as variações térmicas. Os autores concluem que grande parte dessas mortes poderia ter sido evitada com estratégias adequadas.

Mas o alerta vai além da Índia. Ao contrário de outras ameaças causadas pelo clima, como enchentes ou queimadas, os efeitos das temperaturas intensas costumam ser silenciosos. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 489 mil pessoas tenham morrido por exposição ao calor em todo o mundo entre 2000 e 2019. Na Europa, região que, em tese, teria mais condições de se proteger, a onda de calor de 2003 foi responsável por mais de 70 mil mortes em três meses.

A enfermeira Lis Leão, pesquisadora sênior do Centro de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, do Einstein Hospital Israelita, e editora do livro Natureza, Clima e Saúde Pública (2024), concorda com os autores da pesquisa de que essas são mortes que poderiam ser evitadas por condições adequadas e políticas públicas para reduzir a exposição ao calor e ao frio. “Mas a gente sabe que nem toda a população tem a possibilidade de se precaver e de estar numa condição que a proteja das temperaturas extremas”, pondera.

Clima extremo cobra um preço desigual

As temperaturas extremas também têm impactado a saúde da população brasileira. Um estudo publicado em 2022 na revista Nature Medicine, com base em dados de 326 cidades de nove países latino-americanos, revela que cerca de 6% de todas as mortes urbanas estão associadas ao calor e ao frio extremos. A pesquisa mostra que, em dias de calor intenso, cada aumento de 1 °C na temperatura ambiente foi associado a mais 5,7% de mortes gerais, e que 10% dos óbitos por causas respiratórias podem ser atribuídos ao frio.

Outra pesquisa, publicada em dezembro de 2024 na Enviromental Epidemiology, mostra que o Brasil registrou mais de 142 mil mortes relacionadas a temperaturas extremas entre 1997 e 2018. Embora o frio tenha sido responsável pela maior parte desses óbitos (113 mil) — especialmente nas regiões Sul e Sudeste —, o número de mortes associadas ao calor vem crescendo de forma acelerada, especialmente nas regiões Norte e Centro-Oeste.

O corpo humano tem uma regulação térmica que funciona bem em temperaturas amenas. É no calor e frio extremos que começam as alterações fisiológicas significativas. A exposição excessiva ao calor pode causar insolação, arritmia cardíaca, infarto, edema pulmonar e vasodilatação dos vasos. Também eleva a propensão a insuficiência renal aguda, acidente vascular cerebral (AVC), distúrbios neurológicos e transtornos mentais. Já o frio severo oferece risco cardiovascular e respiratório, e pode aumentar a ocorrência de doenças infecciosas, como as pneumonias.

Tudo isso afeta principalmente as populações mais vulneráveis: idosos, que vivem muitas vezes sozinhos e sem cuidados; e recém-nascidos, que ainda não desenvolveram a capacidade de regulação térmica. Mas o risco também se intensifica para quem vive ou trabalha nas ruas.

Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de 2022 apontam que o Brasil tem cerca de 282 mil pessoas em situação de rua, muitas das quais expostas continuamente a variações severas de temperatura, sem abrigo nem acesso regular à água potável. Trabalhadores da construção civil, agricultura, coleta de resíduos e outras atividades ao ar livre também enfrentam jornadas sob sol ou frio intensos — muitas vezes, sem qualquer proteção específica.

Para Leão, a desigualdade climática se revela nessas situações. “Quem está cuidando desses trabalhadores ou dos moradores de rua? A gente depende de políticas públicas que considerem essas mudanças climáticas para atender melhor esse tipo de população”, afirma.

Essa lacuna aparece nas ações educativas, muitas vezes desenhadas sem considerar as condições reais de quem mais precisa delas. “A educação em saúde é muito importante, mas não podemos perder de vista qual é a população que estamos orientando”, alerta a pesquisadora do Einstein. “Por exemplo, se eu falo de evitar exposição ao sol nos horários mais quentes, entre 10h e 16h, quem trabalha na rua não tem essa possibilidade. Quais são as outras medidas que podemos trazer?”

Ela cita iniciativas pontuais que tentam mitigar os riscos, como adaptar jornadas na construção civil ou incentivar a hidratação contínua entre idosos, mais vulneráveis à desidratação. Mas essas ações ainda são isoladas diante da frequência e intensidade crescente dos extremos climáticos. Para a pesquisadora a resposta precisa ser estrutural. “É preciso políticas públicas que consigam melhorar a vida das pessoas para que elas tenham condições de enfrentar essas crises de calor e de frio, que vão ser cada vez mais frequentes”, diz.

Falta de investimentos e de recursos

Com as evidências científicas e tragédias reais se acumulando, a atual gestão do poder público brasileiro retomou a agenda em busca de soluções. Em 2023, o governo federal lançou o Plano Clima, uma estratégia interministerial que orienta políticas públicas de mitigação e adaptação às mudanças climáticas até 2035.

Dentro dessa agenda, o Ministério da Saúde instituiu o Plano Setorial da Saúde para Mitigação e Adaptação à Mudança do Clima, reconhecendo os efeitos diretos do clima sobre a saúde da população e propondo diretrizes para enfrentamento dos riscos. Já no Ministério das Cidades, projetos voltados a cidades e periferias verdes resilientes buscam apoiar municípios vulneráveis com intervenções como arborização urbana e centros de resfriamento.

Segundo Diego Ricardo Xavier, pesquisador do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Icict/Fiocruz), há ainda um esforço para fortalecer a vigilância epidemiológica com base na integração de dados ambientais e aproximação com instituições como o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que produzem informações essenciais para o desenvolvimento de sistemas de alerta e monitoramento de eventos extremos.

No plano local, São Paulo mantém a Operação Altas Temperaturas, com tendas de hidratação para pessoas em situação de rua durante os dias mais quentes. Já no Rio de Janeiro, a morte de uma jovem em um show em meio à onda de calor de 2023 escancarou a ausência de ações para enfrentar temperaturas extremas. Após o caso, a cidade instituiu, em 2024, um protocolo que define níveis de calor em escala de 1 a 5. Em fevereiro de 2025, o Rio registrou pela primeira vez o nível 4 (calor extremo prolongado, entre 40° e 44 °C), o que levou as autoridades a emitirem alertas e orientações de saúde pública e a montarem um esquema especial em unidades de saúde para atender casos de hipertermia.

Nos estados do Sul, ações emergenciais para o frio são acionadas com maior frequência: abrigos temporários, campanhas de arrecadação de agasalhos, distribuição de cobertores e refeições quentes se tornam parte do calendário de inverno em cidades como Curitiba, Porto Alegre e Florianópolis — ainda que com capacidade limitada frente à demanda crescente.

Apesar dessas iniciativas, Leão pondera que os esforços ainda estão longe de formar uma resposta integrada e eficaz. Parte dessa dificuldade está na própria forma como o clima é percebido: como uma variável externa, difusa e pouco mensurável. “Na verdade, nem os outros determinantes sociais de saúde, que a gente já conhece há muito mais tempo, são tratados adequadamente, como o saneamento básico e o acesso à saúde em si. Problemas conhecidos há mais tempo ainda não estão adequadamente solucionados”, observa.

Para o pesquisador da Fiocruz, falta ainda mais articulação entre ministérios, já que os impactos das mudanças climáticas sobre a saúde são apenas a ponta final de um problema que começa muito antes, nos modelos de produção, consumo e desenvolvimento econômico. “É um processo transversal e bastante complexo. A gente precisa de intervenções que considerem mudança de cultura mesmo, educação e de modelo econômico”, afirma.

Na visão da pesquisadora do Einstein, entre as medidas prioritárias está a elaboração de planos de adaptação com foco em saúde, sistemas de alerta precoce acessíveis, centros de resfriamento e hidratação, arborização urbana, capacitação de profissionais e protocolos específicos para o atendimento dos efeitos do estresse térmico. Mas o principal obstáculo é colocar o investimento nisso em pauta.

“Os planos de adaptação precisam de uma coordenação intersetorial. Precisam de investimento. Na própria COP [Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas], a saúde ainda é um tema que tem muito pouco recurso. O dinheiro está sendo investido em outras áreas relacionadas ao clima, como transição energética, transporte, e não na área da saúde, que corresponde ao destino final das alterações climáticas”, avalia Leão.

Mesmo com a percepção crescente da população de que o clima está mudando — e afetando diretamente a saúde —, a resposta é lenta. “A gente precisa de maior agilidade para desenhar esses planos de adaptação, para implementá-los e depois ter uma avaliação se deram certo. Mas a gente ainda nem desenhou todos eles, que dirá implementá-los e avaliá-los”, resume Leão.

Fonte: Agência Einstein