Estudo propõe exame de sangue na atenção básica para diagnóstico de Alzheimer
Doença é o tipo de demência mais comum no Brasil; a maioria dos pacientes é diagnosticado quando o estágio já está avançado, o que dificulta o tratamento.
Doença é o tipo de demência mais comum no Brasil; a maioria dos pacientes é diagnosticado quando o estágio já está avançado, o que dificulta o tratamento. (Foto: Freepik)
Um dos maiores desafios para o tratamento da doença de Alzheimer no Brasil é conseguir fazer o diagnóstico precoce. Além da escassez de médicos especialistas, o custo dos exames disponíveis ainda é muito elevado e eles são realizados por poucos laboratórios. Por aqui, oito em cada 10 pessoas com demência não são diagnosticadas e, portanto, não fazem nenhum tratamento, segundo o Relatório Nacional sobre Demências no Brasil (RENADE). O Alzheimer é o tipo de demência mais comum, representando cerca de 80% dos casos.
Agora, um estudo apresentado na Conferência Internacional da Associação de Alzheimer, realizada em julho nos Estados Unidos, sugere que a implementação de um exame de sangue de alta precisão na atenção primária de saúde pode funcionar para identificar pacientes com potencial doença de Alzheimer mais cedo, chegar ao diagnóstico mais rápido e iniciar o tratamento precocemente.
Os cientistas analisaram 1.213 pacientes com sinais de demência que passaram por avaliação cognitiva na atenção primária ou secundária (já com médico especialista) da rede de saúde americana. Eles compararam a precisão diagnóstica da análise clínica e cognitiva (feita pelo profissional de saúde) com a precisão do resultado de um exame de sangue que analisou a presença do biomarcador ptau-217.
Os pesquisadores chegaram aos seguintes resultados: médicos da atenção primária (não especialistas) acertaram o diagnóstico em 61% dos casos, enquanto o exame de sangue alcançou 91% de acurácia. Já os especialistas (da atenção secundária) acertaram 73% dos casos. Por isso, segundo os pesquisadores, seria importante incluir o exame de sangue na triagem.
A busca por um biomarcador
Para entender o impacto dessa pesquisa, é preciso detalhar o que é o Alzheimer. Trata-se de uma doença neurodegenerativa, progressiva e sem cura, caracterizada pelo acúmulo de duas proteínas no cérebro: tau (ptau) e beta-amiloide. Com o passar dos anos, o excesso dessas proteínas passa a provocar a morte neuronal e leva ao desenvolvimento da doença em si.
O problema é que essas proteínas começam a se acumular cerca de 20 a 30 anos antes de os primeiros sintomas aparecerem – entre os principais estão a perda de memória, alterações de linguagem e perda da habilidade de realizar e planejar atividades cotidianas. E quando os sintomas surgem, ainda é comum serem ignorados, com a crença equivocada de que “são coisas normais do envelhecimento”. Isso leva ao diagnóstico tardio, quando já não há mais o que ser feito.
Por muitos anos, a análise do depósito dessas proteínas no cérebro de pessoas com diagnóstico clínico de doença de Alzheimer só era possível após a morte, em procedimentos de autópsia. Durante décadas, cientistas de vários centros de pesquisa do mundo passaram a estudar formas de analisar a presença dessas proteínas em vida para haver um diagnóstico, de fato, e não somente uma suspeita da doença.
A primeira forma de medir a presença da ptau foi pela análise do líquor (líquido cefalorraquidiano), que banha o cérebro. O problema é que esse exame é considerado invasivo e acaba sendo recusado por muitos pacientes. Outra ferramenta desenvolvida foi o PET (exame de medicina nuclear), que é bastante complexo e exige uma infraestrutura que poucos laboratórios possuem – o que também o torna praticamente inviável para triagem.
Então surgiu a ideia de tentar medir a presença da ptau no sangue periférico. E vários estudos têm demonstrado que essa seria uma ferramenta eficiente. “Desde o começo das pesquisas, o desejo era chegar num exame de sangue para diagnóstico da doença de Alzheimer. O primeiro candidato óbvio foi medir a proteína beta amiloide [também alterada em pessoas com a doença], mas descobriu-se que ela não era um biomarcador robusto porque circula menos no sangue do que a proteína tau”, explica o brasileiro Wagner Brum, doutorando em bioquímica na Universidade de Gotemburgo, na Suécia, um dos principais centros de pesquisa sobre esse biomarcador no mundo. Ele é um dos pesquisadores envolvidos em estudos sobre a proteína tau no sangue.
Segundo Brum, com o avanço da tecnologia, os cientistas conseguiram medir a presença da ptau no sangue e descobriram que os seus níveis chegam a ser 200 a 300 vezes maiores em pessoas com Alzheimer do que no grupo controle. “Até o momento, vimos que a análise desse biomarcador no sangue funciona muito bem em pacientes com sintomas cognitivos leves, por isso a discussão é para fazer sua implementação clínica e chegar no diagnóstico diferencial. Por enquanto, não está sendo proposto o uso desse exame em pessoas sem sintomas”, explica o pesquisador.
Redução no tempo de espera com especialista
Além de compararem a acurácia do exame de sangue com o diagnóstico clínico, os pesquisadores também analisaram o tempo de espera para consulta com especialistas em Alzheimer projetado para 100 meses até 2033. Eles usaram um modelo específico que incluiu a população projetada de pessoas com 55 anos ou mais de 2023 a 2032 nos EUA. A ferramenta presumiu que os indivíduos passariam por uma breve avaliação cognitiva na atenção primária e, se houvesse um comprometimento em estágio inicial, eles seriam encaminhados a um especialista em Alzheimer nos cenários com ou sem exame de sangue.
De acordo com o modelo, sem um exame de sangue preciso, o tempo de espera projetado para consultar um especialista nos EUA seria de cerca de 12 meses em 2024 e aumentaria para mais de 100 meses em 2033, sobretudo devido à falta de consultas com especialistas e ao envelhecimento da população. Em contraste, com o exame de sangue, os tempos médios de espera seriam de três meses em 2024 e aumentariam para 13 meses em 2033, porque muito menos pacientes precisariam consultar um especialista.
Na avaliação da neurologista Polyana Pizza, do Hospital Israelita Albert Einstein de Goiânia, a implementação desse tipo de triagem na atenção primária de saúde para o diagnóstico de Alzheimer é de grande relevância, especialmente em um cenário como o do Brasil, onde o diagnóstico precoce da doença ainda enfrenta vários desafios.
“Em nosso país, assim como a maioria da população mundial que não está inserida em grandes centros de ensino e pesquisa, o diagnóstico de Alzheimer ainda ocorre em estágios avançados, quando as intervenções disponíveis já têm um efeito limitado”, analisa a neurologista. “Isso se deve, em parte, à falta de capacitação e treinamento adequado dos profissionais de saúde da atenção primária para identificar precocemente os sinais da doença.” Ela também destaca a escassez de especialistas, como neurologistas e geriatras, o que prolonga o tempo de espera para um diagnóstico definitivo.
Segundo Pizza, no Brasil ainda são poucos os laboratórios que fazem o exame de sangue ptau217 – o próprio Einstein ainda não o adotou na prática clínica e usa atualmente os marcadores de demências na análise do líquor e em exames de imagem (PET), avaliação neurológica e análise da história clínica dos pacientes.
“Essas descobertas são promissoras e importantes, porém ainda precisamos da validação desses exames como biomarcadores fidedignos para entrarem nos protocolos e diretrizes da doença. Outros estudos são necessários para garantir a representação populacional necessária para sua utilização como biomarcador passível para triagem de pacientes na saúde primária”, pondera.
Na opinião da neurologista, considerando o envelhecimento da população e a sobrecarga do Sistema Único de Saúde (SUS), é razoável supor que a espera por consultas com especialistas também possa aumentar nos próximos anos, assim como prevê a pesquisa dos EUA.
Ela ressalta, no entanto, que no Brasil o tempo de espera pode variar bastante dependendo da região, sendo mais longo em áreas com menor densidade de profissionais especializados. “A introdução de um exame de sangue para triagem poderia com certeza aliviar essa pressão, mas isso depende de muitos fatores estruturais e econômicos, além da necessidade de que esse exame seja validado para nossa população”, observa.
Fonte: Agência Einstein