Manoel Pires: 'Precisamos entender que a relação do Brasil com as contas externas mudou'
Mudança no cenário econômico e político do Brasil em 2023 é debatida na entrevista com Manoel Pires, coordenador do Observatório de Política Fiscal FGV/IBRE.
Manoel Pires, coordenador do Observatório de Política Fiscal FGV/IBRE. (Foto: Divulgação)
O cenário econômico do Brasil neste ano e a perspectiva para 2024, levando em consideração a política atual do país, pautam a entrevista com Manoel Pires, coordenador do Observatório de Política Fiscal do FGV/IBRE.
Como avalia o desempenho da economia em 2023?
Tem um fenômeno conjuntural que talvez a gente esteja perdendo um pouco de vista. O conjuntural tem a ver com esse crescimento do PIB agrícola realmente muito alto (na prévia de outubro, o Boletim Macro IBRE projeta crescimento de 14,8% da agropecuária em 2023). O clima foi favorável – e esse é um elemento que, ao que tudo indica, que será cada vez mais errático – o que não desmerece as questões intrínsecas do setor: tem ganhos de competitividade, produtividade, incorporação e equipamentos mais eficientes. Mas toda vez que o clima favorece, temos um aumento de produtividade e crescimento significativo. O setor extrativo, por sua vez, depende do efeito das commodities, que são reativas às mudanças de oferta e demanda nesse segmento. Crescemos muito quando estão favoráveis, sofremos um pouco quando não estão. Então, se trata de setores eventualmente crescem dois dígitos em um ano para cair na mesma proporção no outro, por variáveis que se não controlam, e isso torna o PIB muito volátil.
Um segundo aspecto dessa questão, mais estrutural, é que quando você olha a decomposição desse crescimento pós-pandemia pelo lado da demanda, o agregado que está crescendo mais é a exportação. Isso se reflete no saldo comercial, que está batendo recorde este ano. Somos um país que tem um histórico problemático com relação a isso, já sofremos muito com problema de balanço de pagamento. Mas não estamos levando em consideração uma mudança significativa, do potencial do Brasil como um grande exportador. Se olharmos o crescimento das exportações nos últimos dois anos, é quase da mesma ordem de grandeza do que vimos nos anos 2000, na segunda metade do governo lula. Em dois anos, crescemos quase o que demorou cinco anos para crescer, quando foi bom para caramba. Isso é muito significativo. Então, as exportações começam a ter maior significância, e isso traz uma questão estrutural importante. Caso essa mudança se confirme, como se combina com as possibilidades de crescimento do país para os próximos anos? Há toda uma agenda que torna o país extremamente interessante para o resto do mundo, desde uma liderança na agenda de mudanças climáticas que pode atrair investimento até a questão dos minerais raros, a capacidade do Brasil de ser fornecedor de energia limpa, tudo isso gera uma penetração muito grande para o Brasil em termos de comércio internacional.
Qual sua análise da discussão sobre se o crescimento de 2023 foi questão de sorte ou resultado de reformas?
Há essa interpretação de que estamos crescendo de forma surpreendente em função do amadurecimento das reformas. Esse debate sempre aparece. Quando saímos da pandemia, chegamos a ter dois trimestres de investimento muito fortes, e naquela ocasião começou-se a alegar que as reformas estão amadurecendo, que esse boom de investimento tinha relação com isso. Depois do segundo trimestre de maior crescimento, os investimentos ratearam, e hoje estão 5% menor do que aquele pico de 2021. E se esquece das reformas. Hoje o que está puxando o PIB claramente é o setor agrícola. Nesse sentido, é difícil encontrar alguma reforma nos últimos anos que possa ter tido impacto direto relevante para a agricultura. Reforma trabalhista? O agro não é grande empregador, então não parece importa; Previdência também não tem relação com isso. Ou seja, é difícil ver conexão direta, independentemente do mérito dessas reformas.
Em artigo publicado no jornal Valor Econômico no final de setembro (link aqui, acesso restrito a assinantes do jornal) tratei desse tema, sobre o que estava puxando a economia, além de outra narrativa relacionada com os estímulos fiscais, que ganhou força depois do resultado do PIB do segundo trimestre. Nesse caso, acho que tivemos, sim estímulo, mas a surpresa do PIB está apenas parcialmente relacionada a eles. Basta observar que o consumo está crescendo menos que o PIB (prévia de outubro do Boletim Macro IBRE aponta o crescimento do consumo das famílias em 2,3% em 2023, para 2,7% do PIB), o investimento também cresceu menos que o PIB (projeção de -0,9% no ano, de acordo ao Boletim). O que cresceu mais que o PIB foi realmente a exportação (7,3% no fechamento do ano). Mas esses elementos de dinamização interna cresceram claramente abaixo do PIB.
Qual a implicação desse cenário para as finanças públicas?
O que vimos este ano é um aumento grande no saldo comercial, e queda do investimento. Consegue-se financiar o déficit público nesse contexto se a poupança doméstica crescer, o que explica por que, de certa forma, a gente ampliou muito o déficit do governo sem necessariamente ter um problema de financiamento da dívida pública. Esse crescimento da economia foi canalizado por meio de poupança para financiar o déficit. Na pandemia, e em 2015, foi diferente. Havia queda de poupança e aumento do déficit, e isso gerou um monte de problema de financiamento para o governo. Até do ponto de vista macro-fiscal esse padrão de crescimento é auspicioso, no sentido de gerar um pouco mais de flexibilidade para o governo no contexto de redução fiscal que se pode atender e que será muito delicado, por exemplo com dificuldade de aprovar reforma. Um aspecto interessante dessa discussão é até que ponto isso pode se manter para frente.
Levando em conta efeitos como o da quitação de dívidas com o programa Desenrola, a política de valorização do salário mínimo, considera que há riscos adiante de se estimular a economia mais do que ela suporta, gerando inflação?
De fato, quando se olha a tendência do governo, a regra fiscal pode gerar alguma ampliação de gasto, dependendo da capacidade do governo de aprovar medidas de arrecadação. Depende muito da forma como vamos crescer: se tiver estímulo fiscal num contexto normal, os juros tendem a subir por conta de pressão inflacionária. No contexto em que você tem um PIB da agricultura fantástico, eventualmente um choque positivo de oferta aumento da produção de alimentos, um preço de commodity mais bem-comportado, há vetores inflacionários importantes que ficam controlados. Acho que o choque do primeiro semestre mostrou que podemos ter um ciclo de curto prazo um pouco mais auspicioso. Qual era perspectiva anterior? A de que o governo aumentaria o déficit, e isso geraria insustentabilidade, sem espaço para reduzir juros. Mas aconteceu o contrário, pois houve uma combinação de choques extremamente favorável. O que é perigoso é o governo depender de que as coisas sejam extremamente positivas para dar certo, pois aí estamos impondo algum tipo de risco. O que eu vejo: o governo tem as prioridades políticas dele, mas ao mesmo tempo busca alguma concertação no orçamento para reduzir déficit. Se for bem-sucedido, reduzirá um pouco a pressão financeira, a despeito de tentar, de alguma forma, sustentar o gasto público em determinado nível.
Na Carta do IBRE da edição de outubro da Conjuntura Econômica (leia aqui), você participa de uma análise detalhada do novo arcabouço fiscal. Considera de fato que, se a perspectiva do governo em ampliar a receita se frustrar, mudar a meta não será o melhor caminho em 2024?
A perspectiva que o arcabouço colocou para a agente é de uma melhora do resultado que o governo vai entregar ao longo de um ciclo. O que espero acontecer é que ao longo deste mandato o governo consiga entregar um resultado fiscal melhor do que o que ele encontrou. A questão da meta tem a ver com a capacidade de o governo conseguir pautar a sua agenda: se conseguir aprovar o pacote proposto, tem alta chance de entregar a meta; se tiver dificuldade política para aprova-la, fica mais difícil. Lembrando que novo arcabouço fiscal tem uma circunstância do meio, a possibilidade de descumprimento formal da meta, uma situação que não acontecia antes e que agora pode acontecer, o que leva à aplicação de sanções no ano seguinte, desenhando o caminho de melhora das finanças públicas.
Levando em conta que se trata de uma trajetória diferente da que vigia no teto de gastos, o que de fato considera que deve ser prioridade nas atenções para 2024?
Acho que há uma tendência de minimizar a importância do ciclo externo na nossa capacidade de crescimento, isso merece mais atenção. Vivemos muitos anos num ambiente em que nos acostumamos com a percepção de que a questão externa era um problema. Com o acúmulo de reservas, isso deixou de ser um problema. Mas agora temos que fazer a passagem para entender que no Brasil, de certa forma, a relação com as contas externas mudou. Passamos a ser um exportador importante e isso abre uma série de possibilidades de crescimento para a economia adiante. Ainda que nem todas as coisas sejam estritamente planejadas, a agenda do governo hoje conversa com esse fato. E isso é positivo.