Geopolítica é desafio do comércio global para Força-tarefa de Comércio e Investimento do B20
“É o primeiro momento que a gente vê o comércio global crescendo menos que PIB global”, afirma Daniel Azevedo, da BCG, consultoria do grupo ligado ao G20.
Dinâmica geopolítica, questões climáticas e crises sanitárias são riscos ao comércio global. (Foto: Pixabay)
Mudanças na dinâmica geopolítica nos últimos anos, questões climáticas e crises sanitárias são alguns dos riscos que têm mudado a dinâmica do comércio global nos últimos anos, incluindo a reestruturação das cadeias globais. É em meio a esse cenário que a Força-tarefa de Comércio e Investimento do Business 20 (B20) discute recomendações nesta área.
Composto por sete forças-tarefas e um conselho de ação, o grupo é o fórum empresarial dos países do G20. Desde o início do ano, as forças-tarefas têm discutido propostas para apresentar aos chefes de Estado na cúpula das maiores economias do mundo. Em 2022, os países do G20 representaram 88,2% do PIB mundial, 83,1% dos investimentos enviados e 79,5% dos investimentos recebidos.
Em entrevista à Agência de Notícias da Indústria, Daniel Azevedo, diretor-executivo e sócio da Boston Consulting Group (BCG), consultoria que apoia a força-tarefa, falou das alterações no comércio global nos últimos anos e de questões a serem enfrentadas para promoção de um comércio internacional aberto, equitativo e eficiente.
Um estudo do BCG divulgado em janeiro prevê crescimento de fluxos comerciais dentro e entre o Sul Global e uma desaceleração dos corredores Sul-Norte. Quais os motivos desse cenário? Como isso representa novas oportunidades para o Brasil?
As forças geopolíticas que estão em jogo acabam tendo efeito sobre comércio global, segurança nacional e criação de empregos pelo mundo afora. Por um lado, a gente enxerga um elo comercial entre as duas maiores potências econômicas globais — a China e os Estados Unidos — reduzindo ao longo da próxima década. Esse já foi o maior fluxo comercial do mundo entre duas nações. Por um lado, os Estados Unidos vão acabar reforçando o comércio norte-americano, com o Canadá, com México e também o comércio com Europa. E por outro lado, a China deve crescer principalmente no Sudeste Asiático, com a Índia e também com o Mercosul e com a África.
Como essas mudanças impactam as empresas?
Quando você vê essa reconstrução das cadeias globais, as empresas que construíram suas cadeias produtivas no mundo onde a lógica era muito “o que é mais eficiente? mais barato? como eu crio uma cadeia de valor mais eficiente e mais barata, sem fronteiras?” isso está entrando num novo estágio onde eu tenho preocupações maiores com a resiliência da minha cadeia.
Quando você coloca a resiliência à frente de custo, ou em paralelo com custo, ou pelo menos como um elemento da equação, as respostas que você tinha antes com relação a qual que era a sua cadeia ideal passam a mudar. É esse momento que a gente vive. A gente vê as empresas cada vez mais alertas e atentas com relação aos riscos para suas cadeias e voltando ao que a gente chama de “fortalecer os múltiplos geopolíticos”.
No mundo plano onde você pode fazer comércio com todo mundo sem se preocupar, era uma questão econômica simples, matemática. Quando você começa a levar outras coisas em consideração, como riscos futuros e até outros elementos não geopolíticos, como por exemplo, riscos de eventos climáticos ou pandemias, como a gente viveu recentemente, que traz estresse para as cadeiras globais, você começa a repensar essa equação.
De que maneira as empresas têm buscado reduzir esse risco?
No passado, se a sua cadeia mais eficiente era uma que nascia no Vietnã, ia para China, passava pela Índia e vinha para o Brasil, era a cadeia que você executava. No mundo onde eu tenho uma preocupação maior com riscos de futuras pandemias, tem desastres naturais com uma frequência cada vez maior e eu tenho riscos geopolíticos, não vai ser essa cadeia, provavelmente, que eu vou querer sustentar. Eu vou querer uma cadeia que tem um risco menor e risco menor muitas vezes é associado ou à proximidade geográfica ou a relações comerciais muito estabelecidas, antigas de países que tendem a ser mais homogêneos com relação a sistemas políticos e jurídicos e em relação à proteção de dados, privacidade etc, que são onde surgem riscos nessas relações de comércio internacional.
A gente está vendo talvez na história recente de negócios a maior mudança depois da mudança que foi tornar as empresas globais. Esse é o primeiro momento que a gente vê o comércio global crescendo menos que PIB global para a próxima década. Não muito menos, um pouco menos e isso vem muito de empresas buscando aproximação de cadeias para reduzir um pouco risco.
O quanto esses movimentos como o nearshoring e friendshoring, de reestruturação das cadeias, têm sido feitos? Quais as dificuldades para essas mudanças?
Isso já está sendo uma realidade sim, mas gradual. Vou dar dois exemplos. Um foi a guerra na Ucrânia, um conflito geopolítico em que os países europeus chegaram a impor uma série de sanções à Rússia, mas havia a dependência do gás russo para sua matriz energética. Não dava para da noite para o dia você de repente desplugar do gás russo. Diferentes países tinham diferentes graus de dependência. Os mais próximos, com Alemanha, bastante dependente e os mais distantes, menos dependentes. Criou-se um plano de reduzir a dependência no médio prazo do gás russo.
Por mais que a guerra na Ucrânia em algum momento, talvez se resolva, conflitos geopolíticos com a Rússia podem voltar a acontecer. Foi criado um plano de criar resiliência energética, com uma combinação de retornar algumas matrizes energéticas que foram um pouco abandonadas, como a nuclear, que é algo que está sendo discutido; reiniciar algumas usinas que estavam fechadas, mas também aumentar a importação de gás natural americano, criar a infraestrutura para você conseguir receber esse gás importado via marítima. Não é uma mudança de um momento para outro, mas decisões são tomadas para de fato mudar.
Outro exemplo são os semicondutores. A indústria americana percebeu a dependência muito grande da China e de Taiwan e decidiu que esse era um setor estratégico que o grau de dependência não era condizente com os riscos geopolíticos. Então iniciou-se um processo de desenvolver a indústria de semicondutores nos Estados Unidos e no México. A Europa também está passando por algo similar.
Então para alguns itens, que são recursos de relevância desproporcional, como energia, como semicondutores, não é algo que você consegue fazer de um dia para o outro a mudança porque você tem toda uma cadeia montada eficiente onde o arranjo original economicamente falando, talvez fosse a melhor equação. Por isso que era a Europa consumia gás russo, por isso que semicondutores asiáticos eram produzidos lá e não nos Estados Unidos. Mas dado os efeitos geopolíticos isso precisa mudar.
Em outras indústrias isso acontece de uma forma muito mais simples. Indústrias talvez menos complexas, com vários fornecedores globais, a mudança acaba sendo um pouco mais simples e direta.
O tema de investimento tem essa interseção com a transição energética. Como mercados emergentes podem atrair investimentos nessa área?
O grande tema da transição energética é que, de partida, as matrizes energéticas dos diferentes países têm naturezas muito distintas. O custo da transição, por consequência, também é bastante distinto e o grau de compromisso individual de cada país com essa transição energética também tende a variar, então é um tema é muito complexo de existir um acordo amplo global em que todos os interesses são levados em consideração e a gente chega numa fórmula em que todo mundo enxerga que é o melhor caminho para todos. A transição energética acaba por trazer algumas distorções principalmente quando países avançam com velocidades diferentes no assunto.
Por exemplo, o CBAM na Europa é uma forma de você, via regulação, acelerar a transição energética em que indústrias mais intensivas em carbono vão ter uma taxação específica dado o conteúdo de carbono emitido no processo de produção de cada uma das indústrias que estão sendo consideradas. Para algumas indústrias, o impacto vai ser bem menor, para produtos mais leves em carbono. Para produtos mais pesados em carbono, o impacto é super relevante nas empresas.
O problema dessa abordagem é que você está impondo uma taxação sobre essas indústrias que no país de origem das empresas que estão exportando para Europa não existe, então você cria um desbalanço de taxação.
Esse ponto também se relaciona com a discussão das responsabilidades diferentes dos países na questão climática…
Os países em desenvolvimento trazem um princípio importante, que é o princípio das responsabilidades comuns mas diferenciadas. O que significa que temos responsabilidade comum, mas a nossa capacidade de atuar sobre isso é distinta, dado o grau de riqueza e o quanto cada país já poluiu na sua história. Então o CBAM ainda é uma medida que não é vista por mercados em desenvolvimento como algo que está alinhado com esse princípio e acho que não tem solução fácil.
Acordos climáticos que de fato sejam impactantes são muito difíceis de se obter, ainda mais no mundo atual que está se desglobalizando. Não só nas cadeias globais, mas também a Organização Mundial de Comércio vem perdendo sua relevância nas últimas décadas e o comércio tem se expandido, mas muito com base em acordos bilaterais ou focados em regiões específicas e não via acordos globais de comércio.
Há expectativa em relação a uma reestruturação da OMC?
Infelizmente a gente enxerga a OMC como um órgão que está perdendo a relevância. O tempo necessário para processamento das disputas na OMC se tornou absurdamente longo. É um órgão que não consegue cumprir a sua função e você tem sinalizações importantes, como os EUA não nomeando juízes para arbitrar nas disputas, o que reduz ainda mais a capacidade de processamento.
Promover avanços estruturais, perenes, não é um processo linear. Tem muito trabalho para ser feito para conseguir resgatar a relevância da OMC. Enquanto isso, eu não vejo nenhum problema das nações buscarem acordos regionais ou bilaterais. Não resolve o problema global, mas pelo menos ajuda a avançar. Tanto é que nas últimas décadas, apesar do declínio da OMC, o comércio global cresceu, gerou riqueza enorme. O futuro é um pouco mais incerto, mas eu acho que no curto pro médio prazo ainda vai ser muito mais calcado em acordos regionais ou bilaterais do que grandes acordos na OMC.
Uma das recomendações da força-tarefa de comércio e investimento do B20 no ano passado foi a digitalização do comércio. O que tem de melhorar nesse ponto e como novas tecnologias como a inteligência artificial podem impactar nesse cenário?
É um daqueles temas em que talvez exista um certo alinhamento de caminho. É quase unanimidade que a gente precisa caminhar na digitalização do comércio. O desafio é na execução e parte do desafio da execução é tornar mais acessível, ampliar a utilização, mas tem algumas questões regulatórias que não são triviais: proteção de dados, proteção de propriedade intelectual, cibersegurança. Existem níveis de penetração e adoção por empresas e países muito distintos. Um futuro onde o acesso digital é mais amplo e a regulação mais uniforme ou com algum grau de alinhamento tem um potencial de facilitar o comércio global. Você amplia a transparência, se torna muito mais fácil a troca de dados e acho que isso é uma infraestrutura básica para a gente conseguir ver um salto no comércio global nos próximos anos.