Bráulio Borges, do FGV IBRE: 'Para que a política fiscal brasileira volte a ser anticíclica em 2025, é preciso uma postura de contração fiscal'
Bráulio Borges comenta atualização do cálculo de resultado fiscal estrutural feito pelo Ministério da Fazenda, para a qual colaborou.
Bráulio Borges, pesquisador associado do FGV IBRE. (Foto: Divulgação)
O RFE estima a situação estrutural das contas públicas, buscando separar efeitos do ciclo econômico e de eventos fiscais não recorrentes e, com isso, colaborar para a análise da condução da política fiscal. A atualização foi realizada em cooperação técnica com o Banco Interamericano de Desenvolvimento e contou com a consultoria de Bráulio Borges, pesquisador associado do FGV IBRE. O trabalho ainda conta uma segunda parte relativa a multiplicadores fiscais de vários grupos de receitas e despesas, ainda a ser divulgada, que envolve o trabalho de Manoel Pires, coordenador do Centro de Política Fiscal e Orçamento Público (CPFO) do IBRE. Nesta conversa , Borges explica as mudanças realizadas no cálculo do RFE e comenta o desafio de ajuste imposto ao governo.
O que motivou sua participação na revisão da metodologia para o cálculo da estimativa de Resultado Fiscal Estrutural (RFE) da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda?
A SPE já calcula esse indicador de resultado fiscal estrutural desde 2016, e sempre busca implementar aprimoramentos metodológicos. Nosso contato foi inspirado em um texto de 2022 em que eu, Manoel Pires (CPFO), Sérgio Gobetti (Ipea) e Rodrigo Orair (atualmente na Secretaria Extraordinária de Reforma Tributária do MF) chamávamos a atenção para a necessidade de melhorias no cálculo desse indicador (leia a íntegra aqui). Naquele momento, chamávamos a atenção para um resultado que havia sido divulgado e considerávamos estranho, de que em 2021 o setor público brasileiro tinha registrado um superávit primário estrutural de 2,4% do PIB. Era como se nossos problemas fiscais tivessem acabado, levando em conta que hoje precisamos de um superávit na casa de 1,0 a 1,5% do PIB para estabilizar a dívida pública em % do PIB. Destacamos várias fragilidades associadas àquela estimativa, indicando uma agenda de aprimoramento que acabou servindo como base para esta atualização.
Em sua participação na divulgação do Boletim RFE, mencionou o pouco uso desse indicador no Brasil. Em que medida isso prejudica nosso debate fiscal?
Essa nova metodologia foi preparada de modo a permitir que o RFE seja divulgado em bases trimestrais, justamente para que tenha um maior impacto na análise fiscal dos agentes econômicos. Até o ano passado, esse indicador era divulgado no segundo trimestre de cada ano, referente ao ano anterior. Ou seja, tínhamos uma leitura já muito defasada, perdendo força como ferramenta de análise, monitoramento da política fiscal.
Com divulgação trimestral, ele certamente poderá fazer parte dos indicadores conjunturais que os analistas observam para avaliar a execução da política fiscal, permitindo uma avaliação mais cuidadosa por separar os elementos cíclicos presentes, por exemplo, nos preços das commodities, na inflação, no próprio PIB. Veja o caso de 2022, quando a alta do preço do petróleo gerou um acréscimo temporário de receita equivalente a 1% do PIB para os três níveis de governo.
O mesmo vale para a inflação no biênio 2021/22, que medida pelo IPCA ficou em torno dos dois dígitos, muito acima das metas. Inflação impacta instantaneamente as receitas, porque boa parte da base de incidência dos tributos são valores nominais. Se a inflação acelera, a base de incidência de tributos vai junto instantaneamente, mas as despesas, não. Estas, grosso modo são reajustadas anualmente, o que significa que parte dessa inflação só será incorporada no ano seguinte.
Então, quando a gente tem desvios muito grandes da inflação em relação às metas, isso gera uma sensação de melhoria de receita que não é permanente. Em minhas estimativas, esse impacto do excesso de inflação em relação à meta em 2022 gerou 1,5 ponto do PIB a mais de receita naquele ano, para os três níveis de governo. Assim, se a gente soma esse impacto ao do acréscimo na arrecadação proveniente das commodities, que gerou mais 1 ponto, são 2,5 pontos do PIB de impulso sobre a arrecadação de 2022. Em boa parte das análises, olhou-se para o superávit primário de 0,5% que o setor público registrou naquele ano como um esforço genuíno de consolidação fiscal, quando pelo resultado estrutural se tratou de um déficit de 0,6% do PIB.
Quais as principais mudanças na metodologia de cálculo do RFE?
As mudanças se concentraram em três aspectos. O primeiro é quanto ao cálculo do PIB potencial e do hiato do produto. Para se calcular quanto é efeito cíclico, quanto é efeito estrutural sobre receitas tributárias, também precisamos saber quanto do PIB é estrutural ou não, pois há uma correlação muito grande entre os movimentos do PIB e a oscilação das receitas tributárias. Então, se queremos ter uma avaliação mais estrutural do comportamento dos indicadores fiscais, precisamos expurgar esses efeitos cíclicos do PIB.
Consideramos as recomendações metodológicas da Comissão Europeia, que vem se debruçando sobre esse tipo de cálculo há mais tempo, posto que lá esses resultados fiscais estruturais não só servem para monitorar as finanças públicas, mas, também, muitos países adotam metas de resultado fiscal ajustadas pelo ciclo, então é preciso acompanhar seu cumprimento. Aqui na região, o Chile também faz isso, daí a necessidade de se ter um bom indicador. Na Europa, essas metas são adotadas pelo menos desde 2005, então eles já passaram por todos os problemas associados a esse tipo de cálculo, que é uma estimativa.
Incorporamos ainda elementos adicionais, posto que essas recomendações da Comissão Europeia, apesar de serem as mais recentes, são de 2018, e valem para países avançados, onde a renda advinda da exploração de recursos naturais pouco impacta o PIB. No fundo, os trabalhos tradicionais que estimam PIB potencial combinam três elementos: capital físico, número de horas trabalhadas e produtividade total dos fatores, que é um resíduo. Nós incluímos adicionalmente o Índice de Capital Humano (ICH) divulgado trimestralmente pelo Observatório da Produtividade Regis Bonelli do FGV IBRE, que nos permite ir além do aspecto quantitativo da mão de obra, tratando também do aspecto mais qualitativo.
Também buscamos incorporar capital natural e serviços ecossistêmicos, que a própria Comissão Europeia está estudando agora. Então, incluímos dados de precipitações – há pelos menos três anos tenho publicado no Blog do IBRE sobre a importância das chuvas para atividade econômica brasileira, seja do ponto de vista do agronegócio, seja do ponto de vista da geração de eletricidade, dada nossa elevada dependência de hidrelétricas. Vários outros elementos poderiam ser incluídos nesse campo, mas foi o que a disponibilidade de informação nos permitiu fazer. Também incorporamos outro fator de produção, que é o insumo energia (eletricidade e combustíveis), pois sem ela não adianta ter capital físico, nem mão de obra.
O segundo aspecto que tratamos nessa nova metodologia é a questão das elasticidades das receitas, usando um conjunto maior de variáveis explicativas, entre as quais eu destaco além do PIB nominal, o preço do petróleo e do minério de ferro, e algumas variáveis para controlar as mudanças tributárias ao longo dos últimos 25 anos em termos de ampliação ou redução de base de incidência e alíquota. Para isso, contamos com dados recém-publicados no Observatório de Política Fiscal (confira aqui a Metodologia de estimação dos gastos tributários estaduais e dados do TECR – Brasil)de estimativa de gastos tributários tanto da União como dos governos regionais desde 2002.
Também foram utilizadas algumas variáveis para lidar com mudanças de composição do PIB, já que alguns setores, como a Agropecuária, pagam menos impostos do que a média. O que chamou a atenção nessa etapa do trabalho é o fato de que a arrecadação de tributos dos três níveis de governo depende muito mais da oscilação dos preços de commodities do que se imaginava anteriormente. Os trabalhos anteriores basicamente consideravam o preço do petróleo afetando as receitas de royalties e participações especiais associadas à atividade extrativa. Chegamos à conclusão que outras receitas são afetadas, como ICMS, com os combustíveis, e PIS/Cofins que também são cobrados sobre combustíveis de modo geral. Como petróleo também tem ciclos, é importante fazer a correção de forma adequada.
O terceiro aspecto metodológico foi uma melhoria na identificação das não-recorrências, tanto do lado da receita quanto das despesas. Promovemos ajustes especialmente na questão de caixa e competência. Um destaque é o caso do Programa de Sustentação do Investimento (PSI), que foi adotado com intensidade na primeira metade de 2010. Basicamente, eram subsídios na concessão de crédito via BNDES, que tinham impacto no resultado primário da União dois anos depois da concessão, o que distorcia estimativas anteriores de resultado fiscal estrutural. Com o ajuste, passou-se a considerar essa despesa primária no ano em que realmente houve a concessão do empréstimo subsidiado. Com isso, houve piora nos resultados fiscais de 2010-13 e melhora em 2015.
A que resultado chegaram?
Com a nova metodologia, o cálculo aponta que hoje o crescimento potencial do Brasil está na faixa de 2,3% a 2,4% ao ano. Isso representa uma aceleração nos últimos três anos. Grosso modo, de 2015 até 2021 o PIB potencial brasileiro cresceu em torno de 1% ao ano, impactado pela recessão de 2014-2016. A partir de 2022, esse crescimento acelerou. Isso remete à discussão sobre como o PIB brasileiro tem surpreendido analistas. Parte da resposta tem a ver com esse aumento de PIB potencial, que, por sua vez, pode ser explicado por fatores como o impacto positivo da reforma trabalhista de 2017, a melhora do regime de chuvas a partir de 2022, e alguma recuperação do investimento, apesar de essa taxa ainda ser baixa.
Quanto aos resultados fiscais estruturais, continuamos com números negativos, em torno de 1,5% do PIB para o setor público consolidado e de 1,0% para a União, quando precisamos chegar mais perto de 1% a 1,5% de superávit para estabilizar a dívida pública ao longo do tempo. O desafio da consolidação fiscal está colocado e é relevante. Parte dele, entretanto, pode acontecer com o fim do excesso de compensações tributárias – que foi destacado em um box do boletim. Elas têm rebaixado a arrecadação desde 2019, mas não eternas. No box, é tratado o caso da “tese do século” – como é conhecida a decisão do STF de 2017 de que o ICMS não poderia fazer parte da base de incidência do PIS/Cofins.
Estimativas da Receita Federal indicam que o saldo remanescente desse passivo soma cerca de R$ 80 bilhões, cuja quitação completa deve acontecer em 2025 ou 2026. Isso significará uma elevação da arrecadação bruta federal em cerca de 1% do PIB. Outras medidas de gasto tributário, como desoneração da folha e o Perse também deverão acabar nos próximos anos, deixando de impactar negativamente a arrecadação, como explorei em detalhe em post publicado em dezembro no Blog do IBRE (confira aqui)
Em 2024, muito se debateu sobre o fato de a economia estar operando acima de seu potencial, ou seja, o hiato estaria positivo, eliminando a necessidade de impulso fiscal. O que a RFE mostra?
Diferentemente da medida da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado e a do Banco Central, que apontam que desde o ano passado a economia brasileira estaria superaquecida, o cálculo de hiato do produto associado ao RFE indica que isso aconteceu este ano, a partir do segundo trimestre. Ou seja, em 2023 a economia ainda operava com algum excesso de ociosidade. Na Nota Metodológica que acompanhou a divulgação do Boletim RFE há alguns exercícios que apontam que essa medida de hiato da SPE é superior às medidas do BCB e da IFI.
Tem um ponto que destaquei na apresentação do Boletim RFE que vale recordar. O Brasil tem histórico de ter uma política fiscal na maior parte do tempo procíclica. Quando a economia está superaquecida, a execução da política fiscal joga lenha na fogueira; quando está em depressão, tem que fazer ajuste fiscal, e isso derruba ainda mais a economia. O que chama a atenção no período recente, mostrado no RFE, é que da pandemia para cá a política fiscal foi na maior parte do tempo anticíclica. Inclusive em 2023, por conta da PEC da Transição. Em 2024, está sendo procíclica, já que ocorreu uma melhoria relevante do resultado primário quando o hiato ainda esteva negativo no final de 2023. Com o hiato fechando 2024 em terreno positivo, para que a política fiscal brasileira volte a ser anticíclica em 2025, é preciso uma postura de contração fiscal, e que não acontece só contendo despesas. Há várias combinações possíveis para gerar uma melhoria do resultado primário, o que inclui aumento de carga tributária.
Além de estabilizar os ciclos econômicos e reduzir a volatilidade macroeconômica, a política fiscal também como objetivo zelar pela sustentabilidade do endividamento público. Nesse ponto, estamos muito aquém do primário necessário. Precisamos de um superávit de 1 a 1,5%do PIB para estabilizar a dívida líquida/PIB. Parte dessa melhora do primário, como mencionei, acontecerá por conta do fim do impacto do excesso de compensações tributárias. Mas ainda é preciso um esforço discricionário adicional por parte da União e governos regionais para se chegar ao mínimo de resultado primário para estabilizar a dívida.