Agro alerta colapso: fraudes, crédito travado e pressão ambiental acendem crise no setor

No encontro realizado nesta quarta-feira (3), em Brasília (DF), nomes centrais do agronegócio apontaram explosão de recuperações judiciais, falhas no seguro rural, entraves ambientais e risco de paralisação do financiamento ao setor.

No evento 5º Brasília Summit – Segurança Jurídica no Campo, organizado por LIDE e Correio Braziliense nesta quarta-feira (3), em Brasília (DF), alguns dos principais nomes do agronegócio brasileiro lançaram um alerta duro sobre o risco de colapso no crédito rural, o avanço de fraudes e o impacto de decisões judiciais e ambientais consideradas desconectadas da realidade do campo.

O ex-ministro da Agricultura Antônio Cabrera foi categórico ao apontar um “descompasso moral” no tratamento de crimes econômicos ligados ao agro. Ele relatou ter comprovado judicialmente uma CPR fraudada em seu prejuízo, mas enfrenta um “calvário” para ver o responsável responsabilizado. Segundo Cabrera, mesmo diante de um golpe milionário, a perspectiva é de pena branda, o que, na prática, estimula a impunidade. “Se ninguém for para a cadeia por falsificar uma CPR de milhões, ninguém vai respeitar esse título”, afirmou, defendendo maior rigor penal para fraudes em instrumentos de crédito rural.

Da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), o diretor técnico Bruno Lucchi traçou um diagnóstico preocupante do endividamento no campo. Ele destacou a combinação de queda abrupta nos preços da soja, sucessivos eventos climáticos extremos e retração drástica do seguro rural. A área segurada, que chegou a 14 milhões de hectares em 2021, deve fechar o ano em cerca de 3 milhões, menos de 5% da área plantada. Ao mesmo tempo, o endividamento no crédito livre do setor atingiu o maior patamar da série histórica. “Não existe bala de prata. Mas hoje temos a tempestade perfeita: preços em queda, clima adverso, Selic alta e crédito mais caro e restrito”, resumiu.

O presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Agronegócio (IBDA) e vice-presidente da Abag, Renato Buranello, focou na explosão das recuperações judiciais no setor. Para ele, o instrumento é importante e, em muitos casos, necessário, mas vem sendo usado de forma distorcida. Buranello criticou o que chamou de “verdadeira indústria da RJ”, com promessas irreais de advogados e consultores e o uso do processo como mecanismo de proteção patrimonial. “O crédito só entra onde consegue sair. Quando se cria a percepção de que a RJ vira perdão generalizado de dívida, o financiador recua. Estamos dando passos para trás no modelo de financiamento do agro”, alertou, lembrando que muitos produtores sequer compreendem os efeitos colaterais de ingressar em recuperação.

A ex-ministra e ex-senadora Kátia Abreu destacou que o Brasil já construiu um arcabouço robusto de governança e rastreabilidade, com georreferenciamento, Cadastro Ambiental Rural (CAR) e monitoramento remoto por satélites. Para ela, o problema agora é de integração e eficiência do Estado. Kátia defendeu o uso desses sistemas como prova de conformidade ambiental e produtiva a favor do produtor e questionou a cultura institucional que mantém órgãos desarticulados. Ela também atacou a política de juros altos. “Juro elevado virou inimigo número um do produtor rural e está alimentando o aumento da dívida pública. Com inflação e desemprego em queda, não se justifica manter a Selic nesse patamar”, disse, defendendo pressão política por uma redução mais rápida.

O ex-secretário paulista e head do LIDE Agronegócio, Francisco Matturro, destacou que, enquanto o Brasil impressiona o mundo com ganho de produtividade e expansão da segunda safra, ainda patina em infraestrutura básica. Ele lembrou que o país tem mais de 130 milhões de toneladas de déficit de armazenagem, com milho estocado a céu aberto em estados como Mato Grosso. “Se aumentarmos muito a produção, vamos perder na roça. Falta armazenagem na fazenda, ferrovia, hidrovia e portos. A logística virou fator de insegurança”, afirmou. Matturro ressaltou também que 77% das propriedades agrícolas no país são pequenas, o que torna ainda mais crítico o acesso a crédito e a tecnologia.

Representando a Embrapa, o pesquisador Daniel Trento chamou atenção para a distância entre o marco legal de inovação e a prática cotidiana nas instituições públicas de pesquisa. Segundo ele, apesar de o Brasil figurar entre os líderes mundiais em pedidos de patentes, o país ocupa apenas a 52ª posição no ranking global de inovação. Um dos motivos, disse, é a burocracia: cerca de “50% do tempo de um pesquisador” é consumido na resolução de entraves formais, negociações jurídicas e prestações de contas. Trento lembrou que, por anos, royalties de tecnologias da Embrapa foram para o caixa único do Tesouro, e só agora começam a retornar de forma mais estruturada para financiar pesquisa. “Temos leis modernas, mas sem mudança de cultura em órgãos de controle e ministérios, a inovação não chega ao campo na velocidade que o agro exige”, concluiu.

Na frente ambiental e regulatória, a advogada Samanta Pineda criticou o que classificou como uma visão de meio ambiente “sem pessoas”. Ela apontou a existência de milhões de hectares de unidades de conservação sem regularização fundiária, com agricultores e pequenos produtores vivendo em limbo jurídico, e denunciou que o desmatamento ilegal ligado ao crime organizado acaba contabilizado na conta do agro. Samanta também atacou o Plano Clima apresentado pelo governo, que, segundo ela, permite aumento de emissão em setores como energia e transporte, mas impõe ao agro a obrigação de reduzir 54% das emissões. “Criou-se uma narrativa em que o agro é o vilão climático, apesar de liderar em plantio direto, integração lavoura-pecuária-floresta e fixação biológica de nitrogênio”, afirmou, defendendo um planejamento estratégico de uso do território e reação firme a legislações externas como a lei antidesmatamento europeia.

Do lado do governo federal, o secretário de Política Agrícola do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), Guilherme Campos, reconheceu a gravidade da situação no crédito e no endividamento, mas ressaltou que não há falta absoluta de recursos. “O problema hoje não é escassez de dinheiro, é escassez de bom cadastro. Os bancos estão mais cautelosos porque muitos produtores já chegam com passivos acumulados”, disse. Campos também distinguiu o produtor afetado por clima daquele que, na sua visão, aproveitou o boom de preços para se alavancar e agora busca prolongar dívidas via recuperação judicial. Ele defendeu o fortalecimento do seguro rural, citou a experiência dos Estados Unidos, onde o governo subsidia boa parte do prêmio, e criticou propostas regulatórias consideradas desconectadas da realidade, como exigências exageradas em bem-estar animal que oneram a produção sem viabilidade prática.

O assessor do Mapa Carlos Ernesto Augustin (Tetê) reforçou a necessidade de ampliar o seguro agrícola, lembrando que, no modelo norte-americano, o Estado banca grande parte do custo e evita que o produtor quebre após dois anos ruins seguidos. Para ele, o Brasil precisa migrar de um sistema centrado em crédito subsidiado para uma combinação mais robusta de mercado privado de crédito e seguro rural com forte participação pública. Augustin também defendeu que crimes como falsificação de CPR e fraudes em operações de crédito sejam tratados com rigor penal: “Se quem rouba milhões em documento sai com cesta básica, a mensagem é clara: compensa fraudar”.

Ao longo do encontro, outros participantes reforçaram a importância da imagem do agro brasileiro no exterior, da certificação ambiental de propriedades e produtos, e do papel central da Embrapa e das startups de tecnologia na adaptação do campo às mudanças climáticas e às exigências de mercados como Europa e China.

Somente na parte final do evento, governadores e autoridades políticas retomaram o tema sob a ótica institucional. Eles reconheceram que o Estado brasileiro — pela lentidão, pela fragmentação e por decisões judiciais divergentes — se tornou um dos grandes geradores de insegurança. A mensagem predominante deixada pelos especialistas, porém, foi clara: sem previsibilidade regulatória, sem freio aos abusos em recuperações judiciais, sem seguro rural robusto e sem integração dos sistemas ambientais e fundiários, o Brasil corre o risco de comprometer justamente o setor que hoje sustenta seu crescimento, sua balança comercial e sua segurança alimentar.